Icict recebe Eni Orlandi, precursora da Teoria de Análise do Discurso no Brasil

por
Graça Portela
,
13/08/2014

O Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), do Icict, realizará na terça-feira, 19/08, das 9h às 12h, no auditório da unidade, a palestra “Sentidos em fuga: efeitos da polissemia e do silêncio”, com Eni Orlandi, precursora no Brasil da teoria de Análise do Discurso.

Com um currículo que inclui doutorado em Linguística pela USP e pela Universidade de Paris/Vincennes e pós-doutorado pela Université Paris Diderot, PARIS 7, na França, além de ser pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos e professora colaboradora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), ambos da Unicamp, docente e coordenadora do Programa de Pós Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí, em Pouso Alegre (Minas Gerais), Eni Orlandi tem como referência em seus estudos, artigos e livros o filósofo francês Michel Pêcheux, um dos fundadores da Análise de Discurso.

Nesta entrevista exclusiva para o site do Icict, a professora, que ousa desnudar o silêncio, fala sobre a palestra que dará na terça-feira e sobre Comunicação em Saúde.

Por que os sentidos em fuga são efeitos da polissemia e do silêncio?

É preciso entender que estou usando "fuga" no sentido musical, como forma complexa de composição polifônica (polissêmica?) com base em um tema que é apresentado sob várias formas (em estilo contrapontístico). A polissemia, como tenho definido, são diferentes movimentos de sentidos no mesmo objeto simbólico. O que tem de particular é que além de serem diferentes movimentos de sentidos, eles são desorganizados, ou seja, vão em diferentes direções.

Lembro aqui que sustento que o funcionamento da linguagem se dá sobre a tensão entre paráfrase (repetição) e a polissemia (diferença). No caso da fuga de sentidos, na tensão entre estes processos, os movimentos podem ser contrários, contraditórios, divergentes, partindo em diferentes direções, produzindo o que estamos chamando sentidos em fuga, no efeito do silenciamento, no funcionamento do interdiscurso (da memória), por causa da ideologia. Exemplo: enunciado ouvido: "a sociedade é que mantém a necessidade do policial corrupto". Aí, há sentidos em fuga. Porque a nossa "expectativa" é que a sociedade quer um bom policial, correto. Ao topar com um enunciado como este há pelo menos duas interpretações possíveis sobre o policial e sobre a sociedade que convivem, que se pressionam. São formações discursivas (ideologia) em movimento projetando tensões, deslocamentos sobre o que pensamos de policial e de sociedade. O que está silenciado aí? O que não se está podendo dizer? Isto faz parte do funcionamento dos sentidos em fuga, pois, dado este funcionamento, a pergunta é: por onde andam os sentidos até chegarem a um enunciado e para onde vão? Para mostrar o silenciamento.

Veja um exemplo como: em uma esquina qualquer, passa uma mulher e um homem diz: "Eta, morena gostosa". A mulher é negra. Há sentidos em fuga neste enunciado tão simples. Esta formulação, se pensarmos a ideologia, tem a ver com racismo e preconceito. Sentidos em fuga, deslizam, indo além, produzem efeitos de sentidos variados que trabalham fortemente o silêncio. Uma palavra tão bonita (morena), plena de processos de significação de movimentos de sentidos pressionados (pela nossa história de colonização com a escravidão, que estão em nossa memória, funcionando no esquecimento), explosivos, manuseados com cautela e deixando uma parte ao silêncio.

Isto tudo para mim mostra que o sentido não é exato, a sociedade não é inerte e os sujeitos não coincidem entre si, não coincidem nem em si mesmos (eles se movem nesta fuga de sentidos), não são exatos. E os sujeitos e os sentidos, no discurso, se movem, se deslocam, fogem... 

Em um de seus textos (“Formas de conhecimento, informação e Políticas Públicas”), a senhora afirma que “a divulgação científica reforça a existência e a representação social da ciência”. Por que? 

Porque com a divulgação científica, a Ciência sai de seu lugar mais próprio e fechado (laboratórios, instituições do saber como universidades etc.) e percorre percursos sociais que a fazem existir fora de seus lugares, produzindo uma representação da ciência na sociedade. E isto, a meu ver, é vital para a existência da Ciência.

A senhora acredita que o cidadão tenha capacidade de distinguir, no discurso, o marketing muitas vezes travestido de divulgação científica? 

Não. Ele precisaria ter uma formação que o fizesse ser capaz de entender os efeitos de sua intervenção como sujeito de conhecimento no seu contexto de vida, para poder descriminar uma coisa de outra. Mas, infelizmente, hoje, há pouca "formação" e só "capacitação" – treinamento, digamos, dos sujeitos em relação ao saber, só para ele usar este saber momentaneamente em função de uma tarefa relacionada ao mercado de trabalho; e isto não é suficiente para ele se situar na conjuntura científica.

Do ponto de vista da análise do discurso quando se trata da comunicação em saúde, informar-se é saber? Ou pode-se estar informando, mas não se saber de fato? Por que? 

Para um analista de discurso, ao contrário do que pensa o jornalista, nunca há informação nem comunicação puramente. A linguagem serve para informar e desinformar, para comunicar e não comunicar. Além disso, se presta a constituir identidades, argumentar etc. Logo informar-se não é saber e pode também não ser só saber.

Por que tornar o silêncio um objeto de reflexão? O que o silêncio "cala"? 

O funcionamento do silêncio, para mim, é social, histórico, ideológico. Ele é fundamental, talvez mais fundamental mesmo do que o que é dito. Não só há silêncio entre as palavras como nas próprias palavras. Há palavras carregadas de sentidos a não se dizer. Muitas vezes se fala x para silenciar y.

Na mídia, por exemplo, quando falam muito de uma coisa, fico me perguntando o que é que estão querendo silenciar... E sem silêncio não haveria possibilidade de significar, porque há um ritmo na linguagem que mostra que é preciso, muitas vezes, que o sujeito se confronte com o silêncio para que os sentidos tomem seus lugares.

Uma palavra pode ter muitos significados e ser dita ou interpretada de inúmeras formas. Mas, o silêncio também tem inúmeros significados e interpretações. Como a Comunicação em Saúde pode trabalhar com a polissemia e o silêncio para se fazer, próxima do cidadão? 

Sim, tanto as palavras como o silêncio significam de inúmeras maneiras e carregam muitos sentidos. Eu distingo duas formas de silêncio e acho que a Comunicação em Saúde pode trabalhar com as duas formas. Uma delas é o que chamo silêncio fundador, aquele que sustenta a possibilidade do dizer. Ele é a iminência do sentido. Quando ainda estamos em silêncio mas há sentidos já trabalhando em nós. Ele é uma espécie de respiração de sentidos, de fôlego para a gente significar. Uma pessoa em silêncio pode estar significando muito fortemente. É preciso saber "ouvir" o silêncio (no caso da doença é fundamental isto. Não ficar só falando).

E há o que chamo de silenciamento, que já é uma política do silêncio para – ao dizer uma coisa – apagar, silenciar outra. Há muitos exemplos no discurso da Saúde, justamente que classificam doenças de um jeito, para não dar acesso ao tratamento se a classificasse de outro. Isto é silenciar. E há a censura mesmo, que é o silêncio como forma de impedir que as pessoas digam certas coisas. Aí, há interdição, silenciamento imposto para que certas coisas não sejam ditas. Há muito na Saúde. A mídia em Campinas ficou sem dar dados sobre dengue na maior parte do período em que corríamos mais risco. Foi censurado dar dados. Este é o silêncio que eu chamo de local, ou seja, a censura, que é feita em cima de algo bem localizado.

 

Arquivos para download

Eni Orlandi - Análise do discurso

"Análise de discurso: conversa com Eni Orlandi", entrevista feita por Raquel Goulart Barreto para a Revista Teias (TEIAS: Rio de Janeiro, ano 7, nº 13-14, jan/dez 2006).

Eni Orlandi - Formas de Conhecimento, Informação e Políticas Públicas

"Formas de Conhecimento, Informação e Políticas Públicas", artigo de Eni Orlandi para a Animus - revista interamericana de comunicação midiática

Eni Orlandi - Silêncios: presença e ausência

"Silêncios: presença e ausência", artigo de Eni Orlandi para a Revista ComCiência no.101 Campinas 2008

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Para saber mais

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
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