Marco Civil da Internet: Congresso Nacional votará projeto de lei nas próximas semanas

por
Cristiane d'Avila
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06/03/2014

Com base em três pilares - neutralidade de rede, privacidade e liberdade de expressão - o projeto de lei do Marco Civil da Internet aguarda aprovação do Congresso Nacional nas próximas semanas. Em linhas gerais, a neutralidade de rede impede que as empresas de telefonia que operam com internet pratiquem a venda de "pacotes" diferenciados de internet em função do tipo de conteúdo que o usuário vai acessar, limitando-as a cobrar pela velocidade na conexão, como acontece hoje. O Marco Civil também estabelece como princípios da Internet a proteção da privacidade e dos dados pessoais do usuário, e reconhece o direito do usuário à inviolabilidade de suas comunicações e ao sigilo de seus registros na Internet, salvo mediante decisão judicial.

"Estamos debatendo a liberdade de acesso à informação, o direito à comunicação, para evitar que as pessoas sejam obrigadas a contratar pacotes pré-definidos pela empresas. O acesso à internet não é um direito só de quem contrata o serviço, é um direito básico de todos. A aprovação do Marco Civil está relacionada à democratização da comunicação, sem a qual não avançamos em direitos fundamentais, como o direito à saúde. O Marco civil é uma carta de cidadania", refoça o vice-diretor de Informação e Comunicação do Icict, Rodrigo Murtinho. A fim de fomentar o debate e trazer luz ao tema, o site do Icict publica uma entrevista exclusiva com a coordenadora do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação, Bia Barbosa, que vem acompanhando em Brasília o movimento de entidades da sociedade civil pela aprovação - com a salvaguarda dos três pilares estruturantes - do Marco Civil da Internet.

O projeto de lei do Marco Civil da Internet aguarda votação no Congresso Nacional nas próximas semanas. Como surgiu a iniciativa?

Bia Barbosa: Nos anos de 2006/07/08, começaram a surgir no Brasil diversos projetos de lei, dentre eles o do senador Eduardo Azeredo - que acaba de renunciar como deputado – que tratava como crime uma série de condutas na internet. Esse projeto foi inclusive apelidado de AI5 digital, pois criminalizava condutas como compartilhamento de arquivos na internet, download e upload de determinados tipos de conteúdo, propondo penas com restrição de liberdade do usuário. Nasce então, como iniciativa do Ministério da Justiça e da Fundação Getulio Vargas, a proposta de se construir de forma colaborativa, com a participação de internautas de todo o Brasil, o projeto do Marco Civil da Internet como projeto de lei, enviado à Câmara dos Deputados pelo Executivo em 2011. O texto tramitou nas comissões da casa, teve diferentes relatores, e no final foi formada uma comissão especial, cujo relator é o deputado Alessandro Molon. Desde então, o texto de Molon vem sofrendo várias alterações, pressionado por distintos interesses dos membros da Câmara, e agora aguarda votação.

Quais são os principais opositores do projeto de lei?

Bia Barbosa: O principal grupo opositor do Marco Civil da Internet são as operadoras de telefonia que oferecem serviço de acesso à internet. Isso porque o Marco Civil acabou se convertendo numa “Constituição da Internet”, pois prevê o direito dos usuários e as obrigações das empresas. Por isso ganhou rapidamente a oposição desse setor da economia brasileira, que encontrou principalmente no deputado Eduardo Cunha (líder do PMDB), um defensor bastante aguerrido e explícito dos interesses das operadoras de telecomunicações.

O que esse grupo quer evitar?

Bia Barbosa: Desde o final do ano passado, quando o deputado Alessandro Molon apresentou seu penúltimo relatório sobre o Marco Civil, com apoio irrestrito de diversas entidades da sociedade civil brasileira que representam os direitos dos internautas, essa empresas passaram a combater um dos pilares do Marco Civil, o princípio da neutralidade de rede. Esse princípio determina que quem controla a estrutura da rede, ou seja, os cabos por onde passam os dados, não pode fazer qualquer tipo de diferenciação ou de privilégio em relação aos dados que estão passando. Hoje não há regras.

Pode exemplificar?

Bia Barbosa: A neutralidade de rede pode evitar que uma empresa “derrube” ligações realizadas por Skype, por exemplo, que são gratuitas, para induzir o usuário ao uso do telefone. A neutralidade também vai impedir que a empresa venda pacotes diferenciados de internet em função do tipo de conteúdo que o usuário vai acessar: pacote para acesso somente a e-mail e rede social, excluindo o uso do Skype, ou pacote mais caro para acesso a vídeos por streaming, a download de vídeos, etc. Ou seja, terá mais acesso a mais conteúdo quem pagar mais. Isso acabaria transformando a internet numa tevê a cabo. A quebra da neutralidade de rede também permitirá às empresas violar os dados na rede para saber que tipo de conteúdo está sendo transmitido, favorecendo ou prejudicando esses conteúdos, de acordo com seus interesses. Apelidamos essa prática de apartheid digital.

Esse então é o principal embate que o projeto está provocando?

Bia Barbosa: Essa foi a briga central do início do projeto e foi o que impediu que fosse votado no ano passado, principalmente em função do lobby das operadoras de telefonia capitaneado pelo deputado Eduardo Cunha, líder do PMDB. O PMDB é o segundo maior partido da base do governo na Câmara. Derrotar o partido não é uma tarefa simples, não só porque tem uma bancada grande, mas também porque o governo, que está apoiando o Marco Civil desde o início ao lado da sociedade civil, terá que derrotar seu principal aliado em ano eleitoral. O deputado Eduardo Cunha acha que é necessário derrotar o Marco Civil porque é preciso derrotar o governo. O Marco Civil está sendo usado agora como moeda do jogo político para o partido (PMDB) conseguir o que quer do governo, alegando que o Marco Civil vai prejudicar os usuários. O discurso deles é que o Marco, ao impor obrigações às empresas, geraria custos para essas operadoras, que seriam repassados para os usuários. A leitura que nós fazemos é que ao garantir direitos aos usuários o Marco Civil estabelece obrigações para as empresas, e esses direitos vão garantir que não criemos internautas de duas categorias.

E se a neutralidade de rede não for garantida?

Bia Barbosa: Se a neutralidade não for garantida, uma grande empresa de notícias pode pagar ao provedor de conexão para ter privilégio no tráfego da informação dela. Ou seja, um pequeno blog vai demorar a “carregar”, enquanto o site de notícias vai carregar rapidinho. A tendência, com o tempo, é se excluir essa diversidade de conteúdo e privilegiar serviços com maior poder econômico. As empresas podem oferecer pacotes diferenciados por velocidade, como já acontece hoje, mas não devem fazer diferenciação em função do tipo de pacote de dados que está passando ali.

E quanto à privacidade?

Bia Barbosa: A privacidade é o segundo pilar do Marco Civil. Como há outros lobbys organizados pressionando o projeto, foram sendo feitas mudanças no relatório que consideramos muito preocupantes, principalmente a que diz respeito à privacidade do usuário. Nesse período, setores que atuam com segurança da internet, incluindo a Polícia Federal, fizeram uma pressão muito grande sobre o relator, para que as empresas passassem a guardar informações dos usuários para futuras investigações. Assim, foi inserido um artigo na última versão do relatório, o artigo 16, obrigando todas as empresas a guardarem por seis meses os dados de conexão dos usuários. Isso significa que se você entrar em qualquer site, seja de empresa, e-mail ou rede social, seu histórico de navegação será guardado. Tem partido pedindo a guarda de dados por cinco anos. Esse artigo acaba gerando uma vigilância em massa dos usuários. Ele contradiz o próprio discurso que a presidente (Dilma Rousseff) fez na ONU em favor da privacidade na rede.

O que pode acontecer se as empresas passarem a guardar o histórico de navegação dos usuários?

Bia Barbosa: Isso, obviamente, terá um custo, e a empresa passará a usar esses dados, como faz o Facebook e o Google, para, por exemplo, promover a venda de perfis para a publicidade, ou fazer uso deles para recuperar os custos com a guarda. Além disso, as empresas podem desistir de operar em função dessa obrigação que o Marco Civil vai impor com o artigo 16. O relator precisou acatar esse pedido porque seis partidos exigiram isso. E sem o apoio desse seis partidos, não seria possível derrotar o PMDB na questão da neutralidade de rede. Ele concedeu o artigo 16 para ganhar apoio contra o PMDB. Mas o combate aos crimes na internet pode ser feito de outra forma. O Marco Civil determina que as empresas que operam no Brasil tenham servidores no Brasil para guarda de dados, mas exigir que todos guardem dados dos usuários é outra coisa. A guarda de dados pode ser usada no combate à pedofilia, à fraude bancária, mas pode ser usada também para fazer repressão a manifestantes, a determinadas orientações políticas, e isso não é bom para a democracia.

O que se pode esperar nas próximas semanas?

Bia Barbosa: Haverá uma fase de debate do relatório em plenário em que serão inseridas emendas, inclusive as nossas. Depois o relator dará um parecer apontando quais emendas vai acatar, e encaminhar o texto à votação. Alguns pontos podem ser votados em separado, como a obrigação de as empresas que operam no Brasil serem obrigadas a guardar os dados no país. Mas essa votação em separado pode alterar o Marco Civil como um todo. É um desafio do jogo legislativo. Defendemos que os três artigos principais precisam ser aprovados como estão no relatório hoje. Estamos falando do direito de 100 milhões de brasileiros e de parlamentares que nem sempre conhecem bem a questão e são orientados pelas bancadas. Temos contado com o apoio de quatro partidos, o PT, o PCdoB o PSOL e o PSB. Mas o jogo está um pouco longe de ser concluído. 

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Arquivos para download

Moção da Fiocruz em apoio ao Marco Civil da Internet

Moção aprovada na Terceira Plenária Extraordinária do VI Congresso Interno da Fiocruz.

Relatório Final da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde

"As causas sociais das iniquidades em saúde no Brasil".

Para saber mais

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
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