Consta nos dogmas, documentos, tratados, dados oficiais, na Constituição Federal de 1988 e no relatório da Unesco sobre ambiente regulatório da comunicação no Brasil, com data de 2011: “A comunicação é um bem público”. Significa dizer que todo cidadão tem o direito à liberdade de buscar, difundir e receber informações e isso só é possível com uma mídia livre, independente, plural e diversificada. Com base nesse princípio, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), associação que reúne mais de 500 entidades, redigiu uma carta-compromisso para apresentar aos candidatos e candidatas que disputam as eleições deste ano no Brasil. O documento avalia a situação atual das mídias, critica o oligopólio dos meios de comunicação e apresenta uma plataforma programática para garantir políticas públicas para o setor.
“O Brasil carece de uma mídia minimamente plural e diversa, que consiga disputar ideias e valores em nossa sociedade”, disse a ex-secretária geral do FNDC, Bia Barbosa, durante palestra que marcou os 64 anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), na Fiocruz, em setembro. A jornalista é ainda coordenadora da comissão executiva do coletivo Intervozes, uma das 25 entidades que subscrevem a carta-compromisso. Para ela, há uma multiplicidade de vozes silenciadas no território nacional e isso se deve essencialmente ao fato de a comunicação no país ter estado concentrada historicamente na iniciativa privada, apesar de a Constituição prever a complementariedade entre os sistemas público, privado e estatal. Bia lamentou que, do conjunto das 13 candidaturas à presidência da República, a grande maioria não apresente sequer uma linha em seus programas de governo com propostas para uma comunicação democrática. “Ou seja, a comunicação é um não-assunto, um não-tema”, criticou.
No documento apresentado pelo FNDC, estão pontuados compromissos como a necessidade de um amplo debate sobre uma nova lei geral de comunicações, a realização da 2ª Conferência Nacional de Comunicação — a primeira aconteceu ainda em 2009 (Radis 91) — e a recriação do Ministério das Comunicações, que em 2016 foi fundido ao Ministério de Ciência e Tecnologia. Além disso, a plataforma aponta 20 diretrizes fundamentais para uma comunicação democrática. “Quando só enxergamos a comunicação como acesso à informação, não vemos os meios de comunicação como atores políticos e não entendemos o papel estratégico que qualquer sistema midiático tem na construção dos rumos de um país e de toda sociedade moderna”, analisou Bia. “Esse é um assunto essencial para a democracia”.
O tema da palestra — “Avanços e retrocessos nas políticas de comunicação: o que fazer?” —instigou a plateia no auditório da Ensp. As poucas conquistas, como a criação da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), em 2007, e a regulamentação do Marco Civil da Internet mais recentemente, em 2016, foram pontuadas pela jornalista. Mas nos últimos dois anos, apontou Bia, o cenário foi de perdas constantes. Ela não tem nenhuma dúvida de que o “desmonte” da EBC, apenas uma década depois de concebida, pode ser considerado o maior recuo no caminho da construção de uma comunicação pública no país. Demanda histórica, a EBC foi criada em 25 de outubro de 2007, quando o governo Lula decidiu fazer valer o artigo 223 da Constituição Federal que determina que o sistema de radiodifusão no Brasil precisa ser distribuído entre as emissoras de caráter privado, público e estatal, que cumprem objetivos diferentes e oferecem serviços de natureza diversa para a sociedade.
A existência de cada um desses sistemas é, portanto, legítimo e constitucional, explicou Bia. Para que fique claro e como bem define o FNDC: os veículos privados ou comerciais ancoram sua programação na venda de produtos e têm objetivo de lucro. Já os veículos estatais têm o dever de prestar contas das ações do poder público para a sociedade — como fazem, por exemplo, TV Justiça e NBR (canal de divulgação das ações do governo federal). Quanto aos veículos públicos, esses não têm fins lucrativos e cumprem a missão de oferecer uma programação complementar, abordando temas que não possuam interesse econômico e veiculando programas para faixas específicas da população ou de caráter cultural e educativo sem apelo comercial — esse é o caso da EBC, que engloba a TV Brasil e oito emissoras de rádio, além da Agência Brasil.
No entanto, a comunicação pública sofreu um duro golpe, na opinião de Bia, com a Medida Provisória 744, publicada já no governo de Michel Temer, em setembro de 2016. A MP extinguiu o Conselho Curador da EBC — que contava com a participação da sociedade para controlar a instituição e evitar abusos por parte do governo — e mudou a estrutura da empresa, colocando-a submetida à Casa Civil e acabando com o mandato de quatro anos do presidente (ver Radis 170). Além disso, em novembro de 2017, segundo o FNDC, foi aprovada uma mudança que retirava o conceito de “comunicação pública” de todo o plano estratégico da empresa. Outra alteração foi a integração da TV Brasil e da NBR e a determinação de que a Agência Brasil passaria a publicar somente conteúdo estatal.
Segundo Bia Barbosa, essa série de medidas não isoladas contribuiu para descaracterizar o projeto da EBC e confundir ainda mais os limites entre comunicação pública e estatal. “A ponto de hoje os trabalhadores afirmarem que o que estão fazendo na EBC é propaganda governamental”, enfatizou a jornalista. “Antes, havia o conselho curador, a gente tinha diretores resistindo e era possível contar com relatórios da ouvidoria. Isso tudo desapareceu e esse é o verdadeiro mico da EBC”, disse, numa referência clara à manchete da revista Época, publicação das edições Globo. Sob o título de “O mico da EBC”, a reportagem de capa da edição de 17 de agosto desferiu uma série de ataques contra a mais importante iniciativa de comunicação pública que existiu no país. Para Bia, é necessário discutir a reconstrução do caráter público da EBC com participação social e autonomia já no primeiro dia de trabalho do próximo governo. “No campo das comunicações, a medida número um que temos que levar adiante no próximo governo é a tentativa de revogar as mudanças que aconteceram na Lei da EBC pra voltar a reconstruir esse projeto”.
Uma característica da mídia brasileira que interfere nos processos de democratização da comunicação no país, de acordo com Bia Barbosa, diz respeito ao monopólio econômico e discursivo do setor privado comercial. A pesquisa “Monitoramento da Propriedade da Mídia no Brasil”, publicada pelo Intervozes em parceria com a organização Repórteres sem Fronteiras no início de 2018, mapeou os 50 veículos ou redes de comunicação de maior audiência no país e constatou que os 50 maiores meios de comunicação pertencem a 26 grupos — sendo que 26 desses veículos são de propriedade de apenas cinco grandes grupos: Globo, Bandeirantes, Record, Folha e o grupo regional RBS (ver Radis 188).
“No Brasil, acontece o que a gente chama de propriedade cruzada, quando empresas que controlam emissoras de rádio e televisão também controlam jornais, revistas e portais de notícia”, seguiu explicando Bia. A prática é proibida em diversos países, inclusive nos Estados Unidos. Outro resultado importante apontado pela pesquisa e até então pouco mapeado foi o crescimento dos canais religiosos e das redes de TV ligadas a igrejas. Além disso, o levantamento revelou interesses dos donos dos meios de comunicação brasileiros em atividades de outros setores econômicos, como saúde, educação, agropecuária, infraestrutura, transportes e mercados financeiro e imobiliário. “Há empresas de comunicação que têm negócios no setor de ensino privado ou que são investidores na área do agronegócio ou que mantêm transações com grupos que controlam planos de saúde”, disse Bia. “É importante olhar para esses dados a fim de perceber como isso influencia na cobertura jornalística”. Segundo ela, em um ambiente historicamente monopolizado pelo setor privado comercial, esses resultados apontam um alto risco à pluralidade de narrativas e à democracia.
A palestra de Bia Barbosa na Fiocruz aconteceu no dia seguinte ao incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro, quando uma imensa parte da história e da ciência brasileiras foi consumida por chamas em 2 de setembro (ver página 7). A cobertura da imprensa hegemônica marcada por descuido e desinformação levou a jornalista a evocar a responsabilidade da mídia na discussão. “Quando será que os meios de comunicação, que tanto defenderam essa política de austeridade e o corte de gastos, que fizeram tanta propaganda em torno dessa agenda econômica, terão a coerência de relacionar esse debate com o que está acontecendo hoje?”, indagou. “Carecemos de uma comunicação pública ou uma comunicação conduzida com base no interesse público”.
Antes, o jornalista Rogério Lannes, coordenador do programa Radis e mediador do debate, já havia provocado. “Se ainda estamos aquém de uma realidade democrática, o que pensar no momento em que, além da supressão de direitos por políticas de austeridade e conservadoras, ocorre o retrocesso nas políticas públicas e na regulamentação da comunicação e o desmonte das poucas experiências em direção à comunicação pública no país?”. Mais do que uma resposta concreta, a intenção era convidar a uma reflexão.
Bia Barbosa assegura que, se os avanços foram poucos e os retrocessos imensos nos últimos anos, os desafios são ainda maiores. Mas a jornalista tem, pelo menos, uma boa pauta a sugerir para um projeto de comunicação que, segundo ela, passa necessariamente por uma mudança no marco regulatório das comunicações, por regras de desconcentração da propriedade dos meios, por investimento forte em políticas públicas de fomento à diversidade e à pluralidade, por investimento pesado para se consolidar um sistema público de comunicação, pelo fim das concessões para políticos, pelo fim do arrendamento da grade de programação para religiões e pela universalização da Internet. “Esse é um programa republicano. É o que qualquer democracia minimamente estruturada faria e faz há décadas”, afirmou.
Na ocasião, Rogério fez questão de lembrar da relação intrínseca que existe entre comunicação e saúde. Ele enfatizou que o movimento da Reforma Sanitária e a 8ª Conferência Nacional de Saúde fizeram mais do que inspirar e idealizar o SUS. “Ao voltar os olhos para a determinação social do processo de saúde e doença, ao reconhecer que a saúde e a qualidade de vida dependem de ações intersetoriais e ao defender a democracia e a participação popular como indispensáveis à conquista do direito à saúde e à construção plena do SUS, elas enunciaram de forma implícita a primazia da comunicação para que haja saúde”.
No entanto, o jornalista lamentou que, 30 anos depois, “a Saúde Coletiva ainda tenha dificuldade de enxergar o exercício do direito à comunicação como essencial à garantia do direito à saúde”. Segundo Rogério, isso se deve também, e em parte, a uma postura dos próprios comunicadores que ainda entendem comunicação como instrumento de mera difusão ou divulgação. “A maioria dos profissionais ainda tem dificuldade de abandonar a visão da comunicação como simples acesso ou transmissão de informação”, disse. Para Rogério, comunicação é um processo que deve considerar e acolher a voz do outro. “Este é um dos principais pressupostos de uma comunicação pública”.
Da plateia, Rodrigo Murtinho, diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), acrescentou que é preciso entender comunicação como um direito fundamental e transformar definitivamente o conceito de comunicação pública em uma prática. Para ele, não é possível prosseguir na questão da saúde enquanto não houver avanços na questão midiática. “Não tem reforma política mais importante hoje na agenda do que a reforma da mídia”, apontou.
Veja abaixo, a apresentação de Bia Barbosa (Intervozes):
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