Experiência, comunicação e saúde

por
André Bezerra
,
29/06/2015

A perspectiva da experiência foi abordada pelo professor português Adriano Duarte Rodrigues em Aula Inaugural do Icict


Nos anos 90, os estudos de comunicação no Brasil viveram uma efervescência em torno dos temas da semiologia e da análise do discurso, sob a égide de professores como Milton Pinto, Fausto Neto e Geraldo Nunes. Naquele momento, a professora e pesquisadora do Icict Inesita Soares de Araujo era aluna de mestrado da Escola de Comunicação da UFRJ e teve seu primeiro contato com o catedrático português Adriano Duarte Rodrigues. “Ele já era largamente reconhecido como um expoente dos estudos de linguagem, com sua ênfase na dimensão pragmática dos discursos e sua abordagem conceitual de ‘campo’, que influenciou diversas gerações de comunicólogos”, conta. 

Duas décadas depois, os dois se reencontram em Portugal, onde Inesita realiza atualmente um pós-doutorado, e aprofundam o diálogo em torno do tema da comunicação e saúde. “Ele não ficou preso às glórias do passado, continuou avançando, publicando, incluindo hoje entre seus interesses os atravessamentos tecnológicos na prática metodológica e analítica. Aqui no Brasil temos, hoje, muito pouco conhecimento de sua obra”, ressalta a professora. Daí surgiu o convite para que Adriano Duarte Rodrigues proferisse a aula inaugural do Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict).

 

Inesita Soares de Araujo, professora e pesquisadora do Icict. (Foto: Acervo pessoal)

Realizada em 25 de março, a aula inaugural trouxe o tema “A Comunicação e o Campo da Saúde”. Em sua fala, o professor da Universidade Nova de Lisboa abordou boa parte do pensamento que vem construindo nas últimas décadas, centrado no conceito de experiência. Ele a define no artigo “Comunicação e experiência”  (1997) como “a vivência de um acontecimento ou de um fenômeno qualquer, pertencentes quer ao mundo natural, quer ao mundo das relações intersubjetivas, quer ainda ao mundo intrasubjetivo”.

Suas palavras, em alguns momentos, foram abertamente provocadoras. “A relação entre a comunicação e a saúde é um problema”, afirmou ao iniciar a conferência. Para o catedrático, o problema surge pois a comunicação decorre da experiência. “Só temos ou percebemos a experiência da saúde quando deixamos de tê-la. Isso vem do fato de ser uma experiência de dispositivos e de suas falhas”, explicou. Em uma abordagem mais próxima da filosofia, o catedrático evocou aspectos subjetivos da natureza humana. “É um problema insolúvel, assim como a experiência da morte é incomunicável”, acrescentou.

Aparentemente antagônica ao paradigma da comunicação e saúde que vem sendo estudado nos últimos anos, a apresentação foi saudada por professores e alunos por trazer outra perspectiva. “A diferença e mesmo a divergência de abordagens e pensamentos são fundamentais na vida intelectual. Não assisti a aula de abertura ministrada por ele, mas li o texto base, que me foi gentilmente cedido pelo professor. Não vi nada que possa ser considerado contraditório com algumas das formas de pensar comunicação e saúde mais correntes no PPGICS. Apenas ele fala de outro lugar, vê aspectos que nos passam desapercebidos”, avalia Inesita Soares Araujo, em entrevista por email. “Foi uma conversa provocativa, tanto teórico-metodológica quanto do ponto de vista das práticas e processos e que reforça a vocação interdisciplinar do programa de pós-graduação”, afirmou a docente Adriana Kelly dos Santos.

Entrevista com Adriano Duarte Rodrigues

Por ocasião de sua visita ao Icict para a aula inaugural, Inova fez algumas perguntas ao acadêmico português sobre comunicação e saúde no contexto da atualidade e sobre novas tecnologias, assuntos presentes em sua bibliografia.

(Foto: Raquel Portugal)

Inova - O que torna a relação entre comunicação e saúde insolúvel?

É uma relação tensa, por várias razões. Uma delas é a natureza do discurso da saúde, que é oposta a do discurso da comunicação. O discurso da comunicação tenta ultrapassar essa dificuldade, mas fica sempre aquém, não a ultrapassa completamente. É possível comunicar a experiência da saúde? É possível sugerir a experiência da doença. A saúde é a capacidade que eu tenho de fazer tudo que eu preciso fazer sem dificuldade, quando eu começar a ter dificuldade para fazer aquilo que eu preciso fazer, quer dizer que surge um problema de saúde. Como é que eu posso fazer a comunicação da saúde se eu não tenho consciência dela? Porque a gente só consegue ter a consciência da saúde quando a perde. Como é que eu posso transmitir a consciência que eu tenho do meu coração? Se ele está trabalhando corretamente, a gente sequer se lembra que tem coração, não é? Só quando eu tenho uma falha no coração eu transmito os sintomas, eu mostro os sintomas dessa falha. Quer dizer, esta é a comunicação dos sintomas.

Inova - O mundo atual se encontra diante de várias incertezas econômicas, políticas e sociais. Como isso afeta instituições e profissionais que trabalham com comunicação e saúde?

Eu vou corrigir um pouquinho a primeira parte da sua pergunta. Você diz que no mundo atual há muitas incertezas políticas, econômicas, sociais. A correção que eu queria fazer é que não é no mundo atual. Sempre foi assim. As sociedades humanas são sociedades de incerteza. Sempre houve incertezas em relação ao nosso futuro, antes de mais nada, porque o futuro, como se diz, a Deus pertence. Nós não sabemos o que é. E também incertezas sobre o sentido que podemos dar a nosso presente. Precisamente isso é o que eu chamo de um dos componentes de nossa experiência no mundo, que é lidar com incertezas. Desde que o ser humano existe, ele depende de suas escolhas, e as escolhas nunca são pré-determinadas, são escolhas. E, portanto, as incertezas são constitutivas da nossa experiência como seres humanos.

Inova - Houve então alguma mudança na experiência da saúde como a vivemos hoje?

O problema da saúde sempre foi substancialmente idêntico ao do nosso tempo. A grande diferença talvez esteja na pretensão que hoje temos de poder resolver os problemas da saúde pelas nossas mãos, pelas nossas forças, o que é uma ilusão. Nós não podemos nunca resolver o problema da saúde em sociedade alguma, nem hoje como ontem. Simplesmente temos a pretensão de disciplinarizar a nossa experiência. O que hoje nós podemos dizer é que os desafios que se colocam atingiram uma dimensão global, isso é talvez o que há de mais novo em nosso tempo. Há cinquenta anos, nós vivíamos relativamente fechados em nossas sociedades. Isso era uma defesa e também uma coação, um constrangimento. Hoje temos a possibilidade de estar presentes um pouco no mundo todo. Essa globalização coloca desafios novos, ecológicos. Os problemas da saúde hoje têm a ver com os problemas ecológicos e essa globalização. Ao dizer isso, estou a exagerar, pois o ser humano sempre viveu uma experiência global, e foi isso que o fez povoar o nosso planeta. As migrações de tribos através do nosso planeta povoaram os cinco continentes, desde a pré-história. Mas isso hoje é mais instantâneo, é mais rápido. Há uma dimensão do tempo que foi quase anulada pela instantaneidade da possibilidade de acesso ao mundo inteiro. Portanto, eu diria que os problemas com os quais hoje a saúde se debate decorrem das questões ecológicas desta experiência da nova globalização, que estamos vivendo neste princípio do século XXI.

Inova - Em seu trabalho, o senhor aponta um confronto entre visões otimistas e pessimistas sobre as novas tecnologias da informação. Como o senhor vê o papel dessas tecnologias como ferramentas para a saúde pública?

Desde sempre, os seres humanos conviveram mal com suas invenções. Nós inventamos as coisas e depois temos, ou uma visão otimista, pensamos que descobrimos a pólvora, para poder usar a expressão, ou pensamos que descobrimos a resposta para nossos problemas, aquilo que se chama de visões otimistas. Ao mesmo tempo, ficamos assustados com o resultado das nossas invenções. Tanto uma atitude como a  outra são atitudes xenófobas em relação às técnicas. É uma metáfora que estou utilizando. Assim como nós temos a xenofobia ao estrangeiro, ao outro, ao diferente de nós, também temos atitudes xenófobas em relação a nossas tecnologias. Como se as técnicas que nós inventamos fossem diferentes de nós, ou nos dominassem, nos controlassem, nos substituíssem na nossa experiência. Isso é uma ilusão perniciosa. Das nossas tecnologias, não devemos ter medo nem entusiasmo. Devemos conviver com elas como obras das nossas mãos, que podemos usar para facilitar a nossa vida. E fomos nós quem as inventamos. Não caíram do céu. São invenções nossas e foram inventadas para coisas boas. Agora, nós pudemos fazer coisas más com elas. Sempre foi assim. Quando inventaram a escrita, nós pudemos escrever coisas maravilhosas, e pudemos escrever coisas assassinas. Quando inventaram a imprensa, pudemos publicar livros encantadores, que nos fazem ser cada vez melhores, e pudemos publicar livros que nos arrastam para fazer coisas péssimas. Tudo sempre foi assim. Temos que admitir a responsabilidade de fazer escolhas sobre o uso das técnicas com as quais convivemos. Outra coisa importante é que essas novas técnicas são de um tipo diferente das técnicas dos séculos XVIII e XIX. As técnicas então eram mecânicas. Eram máquinas gigantescas e nós as víamos funcionar. As técnicas do nosso tempo estão incorporadas em nós. O que é o celular senão um dispositivo que nós trazemos no bolso, às vezes no ouvido, não é? Esta incorporação é algo novo no nosso tempo. E é sobre esse tipo de incorporação das técnicas, aquilo que eu chamo de dispositivos técnicos, que temos que refletir para descobrir a melhor maneira de convivermos com elas. As técnicas do nosso tempo são um pouco como o marca-passo, como o rim artificial. São dispositivos incorporados. Não incorporados fisicamente, como no coração, mas incorporados em nossa experiência como seres dotados de linguagem, são dispositivos da linguagem.

Comunicação e saúde: problemáticas de relações

 Igor Sacramento

Acredito que a relação problemática entre comunicação e saúde se deve, como observou o professor Adriano Duarte Rodrigues, a uma visão instrumental da comunicação como mero conjunto de estratégias, práticas, tecnologias e produtos que visam à transmissão de informações e, no campo da saúde, particularmente, à disseminação de hábitos saudáveis em determinados grupos sociais. Essa perspectiva não reconhece a comunicação como um campo do saber e se detém nas competências comunicacionais (o saber fazer comunicação ou saber usar as tecnologias, a prática) em detrimento do debate epistemológico (as definições, limites e interfaces da comunicação com outros campos). Ignorar essa dimensão pode levar a uma tecnofilia acrítica, em que se tomam as tecnologias de comunicação como, em si mesmas, garantias da inclusão social e da promoção da saúde. É preciso considerar, por exemplo, que o acesso a informações sobre saúde na internet altera a relação entre médico e paciente e reconfigura a própria autoridade do saber médico, tornando a experiência da doença e do estado generalizado de quase-doença (da necessidade de evitar agora o risco de vir a adoecer) cada vez mais alargada e legitimada socialmente. Afinal, nas sociedades contemporâneas, a mídia é um importante vetor das transformações de nossas concepções sobre a verdade, a realidade, a alteridade e também sobre a saúde. Portanto, a relação entre comunicação e saúde é problemática, na medida em que são campos com estruturas, lógicas, agentes, questões, teorias e objetivos distintos, mas que interagem e se tensionam nos processos de definição e valoração pública acerca do saudável e do patológico.

Igor sacramento é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces) do Icict/Fiocruz.

Galeria de fotos

Aula inaugural Icict 2015
Aula Inaugural Icict 2015
Aula Inaugural Icict 2015
Adriano Duarte Rodrigues na aula inaugural do Icict, 2015

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