Icict e COC celebram 30 anos com homenagens à memória de Betinho

por
Cristiane d'Avila
,
05/04/2016

Contra a intolerância, o diálogo e a solidariedade. Contra o pessimismo, o bom humor e a esperança. A mensagem, apropriada ao momento histórico do Brasil atual, soava como hino para a geração que lutava por direitos civis e pela abertura política no início dos anos 1980. Com personagens simbólicos à frente, aquela geração viu florescer um país que alcançou inúmeras conquistas sociais, mas que atravessa hoje uma crise de representação e carece de figuras públicas que devolvam a tolerância e o otimismo à nação.

Não por acaso, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, um mestre no equilíbrio de contradições, foi o grande homenageado na cerimônia de abertura do ano letivo do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em saúde (Icict/Fiocruz) e da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), que completam 30 anos em 2016. A abertura conjunta dos programas de pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict) e História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/COC) foi comemorada ao longo do dia 4/4 com uma série de atividades sobre o tema “Fome, epidemia e mobilização social”.

Durante a manhã, foi exibido na Biblioteca de Manguinhos (Icict) o filme “Betinho - A esperança equilibrista”, dirigido por Victor Lopes. O documentário narra a saga de Betinho contra a hemofilia, a clandestinidade durante o regime militar, a Aids e o preconceito que assombrava os infectados pelo vírus. A luta dele pela causa que o consagrou como líder nacional no combate à fome, o projeto “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, acabou por tirar o Brasil do mapa desse estigma. A iniciativa também levaria o país, anos depois, a criar programas como o Bolsa Família, reconhecido por organismos nacionais e internacionais como responsável pela redução de indicadores da miséria.

A exibição do vídeo foi seguida de debate com Daniel Souza, filho mais velho de Betinho e um dos produtores do filme, José Carvalho de Noronha, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde (Lis/Icict), e Umberto Trigueiros, diretor do Icict/Fiocruz. Ainda durante a manhã, a programação incluiu a inauguração da exposição Betinho - Defensor de Minorias, baseada em parte do Acervo da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), fundada por Betinho e doado à Biblioteca de Manguinhos (Icict).

Na parte da tarde foi realizada no auditório do Museu da Vida (COC) a aula inaugural conjunta dos programas de pós-graduação, com os temas “Cuando los enfermos se organizan, protestan y hasta hacen huelgas”, do professor de História da América Latina do Swarthmore College, o argentino Diego Armus, e “Do combate à fome à superação da pobreza”, de Francisco Menezes, consultor do Programa Mundial de Alimentos da ONU.

Os 30 anos

Nascidos no bojo da reforma sanitária e da redemocratização do Brasil, em 1986, como iniciativas de um grupo de profissionais da Fiocruz e de Sergio Arouca, então presidente da Fundação, o Icict e a COC simbolizam a relevância da comunicação, da informação, da memória e da história da saúde como processos estruturantes da instituição. Em 30 anos, estas unidades conferiram à centenária Fiocruz um lugar de destaque, tanto no Brasil como no exterior, no âmbito da pesquisa e do ensino nesses campos de investigação científica.

“COC e Icict comemoram 30 anos de expertises e competências muito significativas nos seus campos e coerentes com a reforma sanitária. A história, a memória, a comunicação e a informação são componentes fortes dessas duas unidades pelas quais zelamos”, afirmou o diretor da Casa de Oswaldo Cruz, Paulo Elian.

Para Nísia Trindade Lima, vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz e ex-diretora da COC, a escolha do tema “Fome, Epidemia e Mobilização Social” e a homenagem a Betinho foi pertinente na conjuntura atual. “O filme mostra um Brasil mais generoso, e isso é muito importante, principalmente nesse momento em que estamos discutindo o estado democrático e de direito. É preciso defender o equilíbrio de poderes da República e conquistas como o SUS. O Betinho é muito emblemático nessa luta”, ressaltou.  Após a exibição do filme “Betinho – A esperança equilibrista”, Umberto Trigueiros abriu o debate.

Memória e história vivas

“Conheci o Betinho em 1963, quando militava no Partido Comunista como voluntário das brigadas de alfabetização do Programa Nacional de Alfabetização. Mais tarde, já exiliado no Chile, fui trabalhar no IESI, que ele e algumas pessoas que também estavam exiladas lá haviam criado. De volta ao Brasil, cheguei à Fiocruz e aproximei-me da área de saúde em 1987, trazido por Sérgio Arouca, para integrar a equipe da Coordenadoria de Comunicação Social, CCS/Fiocruz, órgão que chefiei entre 1997 e 2001. Estive por vários anos à frente da Assessoria de Imprensa da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, período em que o órgão teve como secretários, além de Arouca, José Noronha. Participei da luta contra a comercialização do sangue”, lembrou Trigueiros. 

O diretor do Icict ressaltou que há 20 anos o cenário da epidemia de Aids no Brasil era outro. Naquele momento, segundo reportagem do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que isolou o vírus HIV tipo 1 em 1987, um patógeno desconhecido, carregado de estigmas e preconceitos, infectava mais e mais pessoas, levando-as rapidamente a óbito.

Segundo dados do Ministério da Saúde, em 1987, cinco anos após a identificação da Aids no Brasil, 2.775 casos da doença já haviam sido registrados no país. A epidemia comprometia a qualidade do sangue e hemoderivados utilizados em transfusões e desafiava cientistas, desorientados sobre como trabalhar em segurança com um agente tão perigoso.

“O trabalho de Betinho frente à ABIA, junto com todo o movimento da reforma sanitária, foram responsáveis pelo Programa Nacional de Combate à Aids, um dos programas mais exitosos do mundo. Já a luta pela cidadania e contra a fome foi uma frente iniciada pelo Betinho, que partiu para a ação para resolver um problema concreto no país, em que 40 milhões de pessoas passavam fome”, destacou Umberto Trigueiros.

Para José Noronha, o nome de Betinho e a exibição do filme ocorrem em um momento oportuno, em que vivemos a ameaça dos direitos civis conquistados. Segundo o pesquisador, a luta pela não comercialização do sangue colocou claramente o papel do Estado como garantidor e provedor desse serviço.

“Foi a organização de uma capacidade produtiva para a garantia da universalidade e da equidade”, enfatizou Noronha, relembrando o movimento que levou ao fim dos bancos de sangue particulares e à proibição da doação remunerada, que reforçava a epidemia e dizimou milhares de vidas, inclusive de hemofílicos como Betinho e o cartunista Henfil, irmão do sociólogo.

“Hoje, não só as correntes fascistas, vide Bolsonaro, como as correntes pseudo-iluministas, do Serra (José Serra, um dos personagens do documentário), alegam que a Constituição de 1988 não cabe no Orçamento da União. Há toda uma agenda latino-americana de desmonte dessa pactuação social que vai levar à inibição e desarticulação dos movimentos espontâneos como as Jornadas de Junho de 2013, com apoio dos grandes meios de comunicação”, alertou Noronha.

“Com as ferramentas de comunicação de que dispomos hoje, teríamos avançados em outras pautas que à época da Ação da Cidadania não avançamos. Mesmo assim, contando apenas com a TV Globo, hegemônica na época, conseguimos milagres com a iniciativa de Betinho”, lembrou Daniel de Souza.

Dirigindo-se aos alunos dos cursos dos programas da pós-graduação do Icict e da COC, que lotaram o salão de leitura da Biblioteca de Manguinhos, o filho de Betinho ressaltou o momento de encruzilhada em que vivem os jovens, considerado por ele tão ou mais importante do que as Diretas Já, que vivenciou em sua juventude.

Na opinião de Daniel de Souza, a participação em todas essas manifestações é fundamental, pois vai criando uma massa em defesa da democracia no país. Além disso, os instrumentos de comunicação hoje permitem que qualquer depoimento ou movimento seja filmado e se torne viral nas redes sociais, para milhões de pessoas.

“Isso é fantástico. Fico imaginando o que o Betinho e o Henfil não fariam com o twitter hoje. Lembrem-se, os próximos meses que viveremos nesse país serão relembrados por todos nos próximos 30 anos, para o bem ou para o mal”, afirmou. 

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