Pesquisa sobre os discursos pró-aleitamento materno no Brasil é publicada em livro

por
Raíza Tourinho e André Bezerra
,
04/07/2016

Em busca dos sentidos sobre amamentação produzidos nos discursos oficiais de promoção e orientação ao aleitamento materno, a jornalista do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) Irene Kalil realizou uma extensa pesquisa sobre materiais de divulgação de campanhas públicas em torno do tema. Dentre os resultados encontrados, a percepção de que a comunicação oficial não alcança toda a complexidade da amamentação e seus desdobramentos na inserção social da mulher.

O trabalho realizado no curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icicit/Fiocruz), concluído em 2015, agora é compartilhado com o público no livro “De Silêncio e Som: A produção de sentidos nos discursos pró-aleitamento materno contemporâneos”, que será lançado nesta quinta-feira, 7 de julho, pelo selo Luminária Academia/Editora Multifoco.

Em entrevista à Inova Icict, a autora analisa as representações encontradas e reflete sobre abordagens complementares de comunicação que possam expandir os sentidos sobre o aleitamento materno:

A sua tese foi defendida há pouco mais de um ano. De certo modo, foi um tempo curto para a publicação em livro. Como se deu esse processo?

A banca que participou da defesa da tese a indicou para publicação e, então, comecei a pensar na possibilidade de fazer o livro. Procurei uma editora pequena aqui do Rio e eles se interessaram. Depois de fazer a edição do material, mandei para revisão e estamos, nos últimos meses, finalizando questões de capa, texto da orelha, prefácio, correções na versão diagramada... Enfim, um processo trabalhoso, mas que tem valido a pena. Primeiro porque eu acredito que seja um tema importante e uma abordagem crítica que precisa ser feita no Brasil, como vem sendo feita em outros países. Segundo porque, à medida em que divulguei o lançamento do livro nas minhas redes pessoais, descobri que há muitas pessoas interessadas em ler e debater sobre esse assunto, partindo de suas próprias vivências de amamentação inclusive.

Quais são os principais achados da sua pesquisa? Houve resultados que te surpreenderam?

É difícil resumir uma pesquisa que se propõe a analisar discursos em poucas palavras. Mas acho que o mais significativo com relação aos resultados é que, embora estejamos no século XXI, e as mulheres assumam tantas funções, demonstrando serem capazes de atuar em profissões e cargos tradicionalmente ocupados por homens, os discursos pró-aleitamento materno ainda se assemelham muito àqueles proferidos pelo movimento higienista da virada do século XIX para o XX. O argumento da prática da amamentação como algo ‘natural’ – que remete à associação da mulher à natureza e do homem, à cultura – é, hoje, aliado ao discurso das evidências científicas, que aponta a superioridade nutricional e as propriedades imunológicas do leite materno. Tudo isso é utilizado no processo de convencimento das mulheres a amamentar, mas as perspectivas dessas mesmas mulheres, seus desejos, expectativas e subjetividade, bem como suas outras identidades (como trabalhadora e mulher, por exemplo), não são levados em consideração na elaboração desses discursos. Isso poderia ser considerado surpreendente, do ponto de vista histórico, mas não posso dizer que me surpreendeu, como mãe e mulher trabalhadora que sou, imersa nesse contexto social e vivendo diariamente essas ‘contradições culturais da maternidade’, como bem pontuou a pesquisadora norte-americana Sharon Hays.

 Nos materiais educativos analisados em sua tese, você encontrou recorrentemente a figura da mãe, sacralizada no processo de amamentação, sem a presença do pai. A ideia de que a amamentação é algo natural e papel somente da mulher ainda é muito forte em nossa sociedade. Você acredita que isso está em vias de mudança?

Sim, a amamentação vem sendo tratada como função natural e social da mulher há bastante tempo e os discursos atuais continuam, em geral, a reforçar essa visão. O pai, quando é ‘incluído’, aparece mais como um apoiador, alguém que pode ajudar a mulher a cumprir sua missão. Como sinalizei na conclusão da tese e do livro, acho que, recentemente, presenciamos alguns sinais de mudanças na sociedade brasileira, não somente no âmbito dos discursos e ações do Ministério da Saúde, mas também no que diz respeito às leis envolvendo a família. Como exemplo, cito a extensão da licença paternidade, que por quase trinta anos foi de 5 dias consecutivos, para vinte dias consecutivos sem prejuízo do emprego e salário para servidores da Administração Pública Federal e funcionários de instituições vinculadas ao Programa Empresa-Cidadã (Lei 13.257/2016). Há, ainda, a aprovação da Lei 13.058, de dezembro de 2014, que altera o Código Civil e regulamenta – e prioriza – a guarda compartilhada entre pai e mãe em casos de separação, entendendo que o tempo de convivência dos filhos com os pais deve ser dividido de forma mais ‘equilibrada’, bem como devem ser compartilhadas as decisões acerca da criação e educação da criança. No entanto, não podemos ignorar que se trata de um processo lento, com avanços e retrocessos, e a minha visão é de que ainda precisamos avançar muito, tanto no âmbito do debate acadêmico e social sobre os papéis de gênero em nossa sociedade quanto em relação a políticas familiares mais efetivas. Nesse sentido, aponto a necessidade de se estenderem as licenças maternidade e paternidade para todas as trabalhadoras e trabalhadores e da criação de licenças parentais, como já existem em países como Suécia, Portugal e outros, o que possibilitaria tornar mais equânime a divisão do bônus e do ônus da criação dos filhos entre mulheres e homens.

Como uma concepção mais feminista, digamos assim, e realista da amamentação pode contribuir para melhorar a comunicação institucional em saúde?

Acho que uma visão mais ampla, profunda e plural do processo de amamentar e desmamar deveria, necessariamente, incluir os diversos atores envolvidos, especialmente a mulher, pois é ela o principal destinatário desses discursos, seja direta ou indiretamente (por meio dos materiais dirigidos aos profissionais de saúde, que atuarão como mediadores dessa comunicação). Como salientaram as pesquisadoras Inesita Araújo e Janine Cardoso, o destinatário das mensagens institucionais quer vivenciar a possibilidade de se expressar, e não ser um mero receptor. Ele também quer se fazer ouvir. Uma abordagem da amamentação nos materiais oficiais que busque contemplar a visão das mulheres – e de seus parceiros – sobre essa experiência vai, certamente, contribuir para desconstruir muitos mitos acerca da prática, de sua suposta naturalidade e de como ela é algo ‘sagrado’ para toda mulher, pré-requisito para ser uma ‘boa mãe’. Acredito que a comunicação institucional em saúde, para ser efetiva, precisa levar em conta seus interlocutores, mesmo que isso desestabilize, em certa medida, o discurso hegemônico sobre o tema.

Você trabalha em uma instituição de saúde. É possível implementar uma cultura mais pluralista da comunicação em um ambiente como esse? Como a pesquisa acadêmica interferiu na sua rotina profissional?

Sim, o desejo de fazer o doutorado em Informação e Comunicação em Saúde veio exatamente da certeza de que é possível – e necessário – implementar uma cultura mais pluralista da comunicação em instituições de saúde. Até porque sempre acreditei que a reflexão acadêmica servisse a um aperfeiçoamento da prática profissional. Isso não significa dizer que tem sido uma tarefa fácil, realizada sem tensões ou resistências. As práticas e discursos no que diz respeito ao aleitamento materno já estão bastante sedimentadas, e, como na maior parte dos temas em saúde pública, o usuário é visto como alguém que necessita da melhor informação para mudar seu comportamento. São sempre os comportamentos da população que estão errados, mas o discurso da política pública, muitas vezes, não é problematizado ‘de dentro’. Por isso, entendo que, como jornalista de uma instituição que atua na linha de frente da política nacional voltada ao aleitamento materno, a minha tese vem ao encontro dessa necessidade de uma crítica ‘de dentro’, de alguém que, a partir de sua própria experiência pessoal de amamentação e desmame, colocou-se na posição de ‘estranhar o familiar’, como se propõe a antropologia. Ou, como eu escrevi na tese, fazer o movimento de ‘historicizar o natural’.

Outra lacuna que você encontrou em seu estudo é a ausência de materiais educativos institucionais sobre o desmame. Há também uma ideia de que esse processo é natural, mas pode ser uma etapa angustiante tanto para mãe, quanto para o bebê. Qual é a importância da comunicação institucional neste processo?

O meu projeto de doutorado, inicialmente, era sobre o desmame. Foi a partir dele que tudo começou. Estava em processo de desmamar o meu primeiro filho quando me descobri des-informada e des-amparada, mesmo estando dentro de uma instituição de saúde, mesmo sendo jornalista, mesmo sabendo usar o Google... As mães são bombardeadas de informações que as ‘convidam’ a amamentar seus bebês, a continuar amamentando mesmo após o seu retorno ao trabalho, mas, de modo geral, não recebem orientação e até mesmo ajuda psicológica em seu processo de desmame. Sim, pois acredito que o desmame não é só da criança, mas da mãe também. Enfim, não sou uma especialista em desmame... Mas fiz algumas leituras ao longo dos últimos anos que me balizaram na crítica que já fazia, como mãe, sobre o silenciamento do desmame nos materiais educativos oficiais. Se optamos por ter uma política estatal estruturada que trata do aleitamento materno como questão de saúde pública, temos de tratá-lo em toda a sua complexidade, ouvindo e dando voz a todos os atores envolvidos na experiência de amamentação. Os discursos precisam ser menos prescritivos. A comunicação precisa adotar uma postura mais dialógica. Da mesma forma que a atenção direta à mulher, criança e família durante a amamentação deve contemplar o desmame e incluir a mulher e seu desejo no processo, os materiais que estão em circulação precisam trazer informações sobre o tema, indicação de fontes diversificadas para consulta e, por que não, relatos de pessoas que passaram por essa experiência, o que, certamente, traria para a discussão uma questão fundamental: a singularidade dessa experiência, que não é vivida da mesma maneira por cada par mãe-bebê. Em minha opinião, isso fortaleceria a política, e não o contrário.   

Você acredita que materiais comunicativos mais plurais, realistas e específicos poderiam auxiliar na melhoria dos índices de amamentação prolongada? Qual é o lugar da comunicação nas políticas de saúde da mulher e da criança?

Não acredito que os materiais oficiais devam ter compromisso com o aumento dos índices da amamentação prolongada, até porque isso não depende somente da melhor informação, mesmo naquela pautada nas mais recentes e confiáveis evidências científicas, mas de uma série de fatores, desde econômicos até subjetivos. Mas, se o Brasil optou por ter uma política nacional voltada ao aleitamento materno, acho que essa política deveria ser pensada como uma intersecção entre a saúde da criança e a da mulher, vista como sujeito da política, não como um agente de uma política que não se dirige, verdadeiramente, a ela. No caso do aleitamento materno, com exceção das pesquisas sobre prevalência, o Ministério da Saúde não realiza nenhuma pesquisa junto à população para conhecer seus hábitos, seus conceitos e contextos relacionados à prática, nem mesmo uma pesquisa de recepção dos materiais que são produzidos junto aos seus ‘públicos’. Isso é problemático, pois a comunicação tem um lugar fundamental, não como meramente um espaço para a decodificação de mensagens entre um emissor e um receptor, uma ferramenta que justapõe aos processos e práticas em saúde. Como defende a pesquisadora Áurea Pitta, a comunicação é um elemento inerente aos processos da\na saúde, e nós, gestores e comunicadores, temos de nos valer dela para compreender, com mais profundidade, quem são e como se constituem esses sujeitos de discursos e práticas a quem nos dirigimos em nossa rotina profissional. Acho que isso me faz pensar numa comunicação que se entende menos como ‘propaganda’ de estilos de vida e mais como um instrumento que nos possibilita fazer um diagnóstico de determinada questão de saúde junto à população. 

SERVIÇO

Lançamento do livro “DE SILÊNCIO E SOM: A produção de sentidos nos discursos pró-aleitamento materno contemporâneos” (Editora Multifoco)
Quando: 7 de julho de 2016, às 18 horas
Onde: Bistrô Multifoco – Av. Mem de Sá, 126, Centro 

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