Carta Política

por
Icict/Fiocruz
,
07/02/2017

Através desta carta, buscamos manifestar preocupações, reflexões e propostas diante dos desafios e impasses pelos quais passa o SUS, uma das mais importantes conquistas do povo brasileiro


Missão da Fiocruz:

Produzir, disseminar e compartilhar conhecimentos e tecnologias voltados para o fortalecimento e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e que contribuam para a promoção da saúde e da qualidade de vida da população brasileira, para a redução das desigualdades sociais e para a dinâmica nacional de inovação, tendo a defesa do direito à saúde e da cidadania ampla como valores centrais.

O VII Congresso Interno da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) reafirma seu compromisso com a promoção da saúde pública como direito humano inalienável; com o avanço do conhecimento científico e tecnológico a serviço da população; com a compreensão da saúde como elemento central para o desenvolvimento sustentável e para a reafirmação da soberania nacional.

Para o enfrentamento das desigualdades sociais e iniquidades geradas pelos determinantes econômicos, sociais e ambientais que impactam as condições de vida e cidadania no país, a Fiocruz entende a saúde como um fator estruturante e um importante articulador de políticas públicas, avanço do conhecimento científico e políticas industrial, tecnológica e de inovação. Nesse sentido, a sociedade tem como desafio aliar crescimento econômico, equidade e inclusão social. O campo da saúde traz, ainda, novos desafios com a exigência de permanente atualização da agenda institucional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I).

A Fiocruz considera imperativo contribuir com o debate sobre a necessidade de constituição de sistemas universais de saúde, enfrentando a discussão internacional acerca da “cobertura universal”, e sobre as políticas de eliminação das desigualdades sociais, essenciais para a defesa da vida em todas as suas dimensões.

Esse imperativo ganha especial sentido neste momento em que os cidadãos se preparam para as eleições democráticas nos estados e no plano nacional, e para a 15ª Conferência Nacional de Saúde, esperada para o próximo ano.

Através desta carta, buscamos manifestar preocupações, reflexões e propostas diante dos desafios e impasses pelos quais passa o SUS, uma das mais importantes conquistas do povo brasileiro. A defesa do SUS torna-se decisiva frente a uma conjuntura internacional adversa, com elementos de desaceleração do crescimento econômico. Somam-se opções políticas que, em diversos países, submetem o interesse público à lógica do mercado e adotam medidas de caráter neoliberal, provocando a desconstrução do Estado de bem estar social e comprometendo a vida das populações.

Assim sendo, o VII Congresso Interno da Fiocruz expõe aqui seus posicionamentos:

1)  É cada vez mais evidente que a luta do povo brasileiro pela saúde como direito humano e social recoloca o desafio de enfrentar as desigualdades sociais e iniquidades geradas pelos determinantes sociais e ambientais da saúde na sua plenitude, por intermédio de políticas que assegurem a soberania nacional. Esta agenda passa pelo pleno emprego e pela regulação do trabalho e inclui, entre outros tópicos, a igualdade de gênero e a abolição de todas as formas de discriminação. Ressalta-se a necessidade da garantia de padrões sustentáveis para o desenvolvimento nacional, que considerem o acesso universal a saúde, educação pública, habitação, saneamento, transporte público, alimentação, previdência e assistência social.

2)  A saúde é um direito de todos os cidadãos e um dever do Estado. O SUS deve ser garantido com o financiamento público adequado para assegurar a universalidade e a integralidade da atenção, e com toda a complexidade de suas ações e técnicas para viabilizar o direito à saúde - dos procedimentos de promoção, prevenção e atenção básica aos mais especializados. Entretanto, o desempenho do SUS tem sido afetado por deficiência de gestão e grave desfinanciamento, o que compromete o integral exercício de sua missão. A Fiocruz entende que a sustentabilidade do SUS depende da expansão dos recursos destinados à saúde, por meio de iniciativas que ampliem os orçamentos e as fontes de financiamento do setor. A sustentabilidade do SUS passa também pela aprovação de projetos de iniciativa popular, pela agilidade na incorporação de novas tecnologias pertinentes, evitando a judicialização, e por políticas de combate à medicalização exagerada. Depende ainda do fim da desvinculação das receitas da União para o orçamento da Seguridade Social. Faz-se necessária a eliminação de subsídios e isenções para o setor privado de saúde, independentemente dos interesses do mercado.

3)  A saúde da população brasileira sofre o impacto da transição demográfica, caracterizada por um processo de aumento da longevidade e ampliação da expectativa de vida, por mobilidade geográfica e novos arranjos territoriais, gerando diferentes necessidades de atenção à saúde, como aos portadores de doenças crônico-degenerativas, o que requer geração de novos conhecimentos e adoção de novas tecnologias assistenciais e modelos de atenção apropriados. Entretanto, a disponibilidade de novas técnicas e procedimentos, ao mesmo tempo em que diminui a mortalidade, pode acarretar uma maior morbidade, inclusive de caráter crônico e em crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, a persistência e a importância epidemiológica e social de doenças infecciosas e o surgimento de outras, emergentes e reemergentes, conformam um quadro complexo que exige uma abordagem diferenciada por parte de diversas políticas sociais e econômicas que têm impacto sobre a saúde. Diante de tal quadro, é fundamental reafirmarmos a saúde como espaço de intervenção intersetorial, principalmente no âmbito da seguridade social, mas também das políticas de habitação, saneamento, justiça, trabalho, de meio ambiente, produção de alimentos, cultura, educação pública e CT&I.

4)  Convivemos com o crescimento de lesões incapacitantes e mortes por causas externas, com destaque para os acidentes de trânsito e a violência que atinge as camadas mais jovens da sociedade; a violência e discriminação de gênero, raça e orientação sexual e também contra crianças, adolescentes e idosos; as taxas de homicídios equivalentes às de conflitos bélicos; e a violência policial indiscriminada, principalmente contra os mais pobres. Uma realidade que o Estado e a sociedade precisam enfrentar e mudar radicalmente se quiserem alcançar uma verdadeira justiça social e o desenvolvimento sustentável. Soma-se a essas a questão das drogas, que deve ser abordada como um problema de saúde pública e não com a atual predominância de ações repressivas - outro tema desafiador para a produção de conhecimentos interdisciplinares capazes de fundamentar a elaboração e a implantação de políticas públicas nas áreas de justiça, educação, assistência social, saúde e segurança pública.

5)  A agenda mundial pós 2015, com a implantação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, terá que expressar as decisões da Conferência Rio + 20 e da Cúpula dos Povos, e servirá para a mobilização em torno do enfrentamento dos grandes desafios da sustentabilidade do planeta e das desigualdades sociais e iniquidades geradas pelos determinantes sociais e ambientais da saúde. Nesse quadro, como parte integrante de um paradigma de desenvolvimento com qualidade de vida, há que considerar temas como mudança climática e de biomas, biodiversidade, saúde humana, animal e de ecossistemas. Ao lado da implementação de adequadas políticas de saneamento em larga escala, propõe-se discutir e revisar o modelo de desenvolvimento nacional que gera impactos nocivos sobre o ambiente e as populações tradicionais. Há necessidade de ampliar e tornar mais rigorosos o controle e a regulação de produção, comercialização e uso de agrotóxicos, assim como de antimicrobianos e hormônios na criação animal intensiva, que colocam em risco as populações. Fortalecer a proteção e a atenção à saúde dos trabalhadores também é fundamental nesta agenda para a sustentabilidade. E, para a eficácia dessas políticas, deve-se incentivar pesquisas e instrumentos de controle e monitoramento dos impactos sobre a saúde humana e o ambiente.

6)  A Fiocruz presta decisivo apoio à reorientação dos modelos de formação e educação permanente voltados para os trabalhadores do SUS. Considera imprescindível adequar a formação em saúde às necessidades do SUS, à produção de práticas humanizadas e à consolidação da integralidade nas redes de atenção, em respeito aos princípios do SUS. Destaca-se, ainda, a necessidade de aperfeiçoamento da escuta às instâncias de participação social.

7)  A Fiocruz entende a geração e disseminação de conhecimento científico, assim como a pesquisa e sua tradução em inovação para a saúde, como fundamento e eixo transversal às suas diversas áreas de atuação. Reforça-se a importância da pesquisa como pilar de qualquer processo de inovação, independentemente do direcionamento temático. As pesquisas feitas em qualquer área do conhecimento, além de representarem importante componente de soberania nacional, podem trazer benefícios diretos ou indiretos à saúde da população, mesmo que, eventualmente, possam não estar evidentes a priori. Este campo orienta-se pela integralidade e segue os princípios éticos em pesquisa. A Fiocruz também acompanha as mudanças mundiais referentes à utilização de biomodelos experimentais e empenha-se na busca de métodos alternativos à experimentação animal.

8)  A educação, a comunicação, a informação e o acesso aberto ao conhecimento científico são entendidos, acima de tudo, como direitos humanos e fatores estruturantes para o fortalecimento do SUS, para o desenvolvimento institucional da Fiocruz e para seu relacionamento com a sociedade. Constituem-se como fundamentos para a pesquisa, a prestação de serviços, a formação, o planejamento e a gestão interna. Simultaneamente, a comunicação, a informação, a popularização e a difusão da ciência estabelecem formas e meios pelos quais os temas de CT&I e saúde podem ser compartilhados com o cidadão, em uma visão dialógica, na qual a sociedade é participante ativa e não mera receptora.

9) Instituição estratégica de Estado, a Fiocruz reafirma seu compromisso de participar ativamente da estruturação de políticas de diplomacia em saúde e cooperação internacional, em consonância com as diretrizes do governo brasileiro, especialmente em apoio ao Ministério da Saúde. Prioriza as relações Sul-Sul, com os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e com os países da América Latina e África, resguardando as suas soberanias. Sempre fiel ao princípio da solidariedade entre os povos, mantém colaboração e intercâmbio com organismos internacionais e importantes instituições de saúde de diferentes países.

10) A presença marcante dos movimentos sociais e as manifestações populares trazem para a cena política a realidade de uma sociedade em transformação, que reivindica a concretização de direitos: saúde e educação de qualidade; mais emprego e melhores condições de trabalho e salário; acesso à moradia e à terra; transporte público eficiente, barato e acessível; participação ativa nas decisões sobre os gastos públicos e na vida política nacional. Sabe-se que os impasses e desafios do SUS e da saúde pública brasileira, longe de estarem circunscritos ao setor, requerem uma ampla e profunda reforma do Estado e do sistema político, com reformas na legislação, na Justiça e nos orçamentos; com o fortalecimento da democracia através do controle social; com a adoção do financiamento público das campanhas eleitorais; e com a utilização de mecanismos de democracia participativa para a tomada de decisões sobre políticas sociais.

11) A Fiocruz apoia firmemente a adoção de normas, legislações e medidas governamentais que tornem mais eficazes, efetivas, eficientes e transparentes as ações do Estado na gestão da CT&I. Elas são cruciais para assegurar e ampliar o acesso da população a insumos de saúde, bem como promover a inovação e uma política industrial que reduzam a dependência da importação de medicamentos, equipamentos médicos, kits diagnósticos e outros insumos, fortalecendo a soberania nacional em área estratégica. A Fiocruz assume o compromisso de contribuir para a proteção da saúde da população e para a qualidade, a segurança e a eficácia dos produtos, bens e serviços, bem como para o desenvolvimento do sistema nacional de vigilância sanitária.

12) A capacidade institucional de contribuir para o desenvolvimento tecnológico exige permanente compromisso da Fiocruz com a implantação de infraestrutura adequada e com a adoção de processos que contemplem a capacitação e a saúde de seus trabalhadores, a valorização das carreiras, a garantia de condições de trabalho adequadas e o aperfeiçoamento dos modelos organizacionais e de financiamento e dos mecanismos de avaliação e planejamento, atentando para mudanças de cultura institucional. Dessa forma, busca-se aperfeiçoar a gestão da inovação e fortalecer a integração de suas unidades técnico-científicas, valorizando a diversidade institucional para o enfrentamento de problemas complexos de saúde. Em especial, faz-se necessário aproximar as atividades de educação, pesquisa, produção, atenção e assistência à saúde de referência, de modo a consolidar o projeto de presença nacional da instituição, reduzir as desigualdades regionais e consolidar programas estratégicos.

13) A Fiocruz está comprometida com o aprimoramento constante e transparente de seu modelo de gestão democrática e participativa, convicta de que este é um dos pilares que sustentam seu compromisso social e de eficiência e sua consolidação institucional. A Fiocruz reafirma, assim, a valorização dos profissionais e seu compromisso com a sociedade e com a prestação de serviços públicos de qualidade, em defesa do SUS.

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