Acervos culturais: quando segurança é a palavra chave – Parte 1

por
Graça Portela
,
23/08/2018

Realizado nos dias 7 e 8 de agosto, último, o I Encontro de Segurança de Acervos Culturais reuniu especialistas, bibliotecários, arquivistas, técnicos e auxiliares de preservação que durante dois dias debateram os principais tópicos sobre a segurança e a preservação de acervos culturais, no Salão de Leitura Henrique Leonel Lenzi, da Biblioteca de Manguinhos, na Fiocruz.

Já na abertura, os responsáveis pela Seção de Preservação de Acervos Bibliotecários, Marcelo Lima, e pela Gestão de Acervos Bibliográficos, Mônica Garcia, do Icict, falaram sobre a importância de se debater o tema, e enfatizaram os esforços que o Icict tem feito para a segurança do acervo, em especial da Seção de Obras Raras. Finalizando, a vice-diretora de Informação e Comunicação, Tânia Santos, enfatizou a importância do Encontro e o fato de a sua realização ser na Biblioteca de Manguinhos, símbolo do esforço de Oswaldo Cruz em manter o acesso aberto aos estudos e pesquisas que eram e são feitos na Fundação que leva o seu nome. Ela fez questão de chamar a atenção para a saúde dos que trabalham com os acervos: “ao se tratar de segurança, a questão da saúde dos trabalhadores deve também ser lembrada".

Passado e presente

A primeira a falar foi a pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História da UniRio, Márcia Chuva, que em sua palestra "Bens culturais brasileiros inscritos como patrimônio mundial na Unesco" fez um histórico do que é e como é determinado que algo seja considerado como patrimônio, fazendo um passeio histórico sobre os patrimônios imateriais e materiais do Brasil, os critérios que estipulam o que deve ou não ser patrimoniado, e chamando a atenção sobre "os interesses e visões diferentes que levam um bem a ser tombado ou não". Márcia Chuva falou também sobre a importância da "memória silenciada ou renegada", como foi o caso das ruínas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, que foram tombados, mas que depois foi reconhecida a necessidade de se tombar também a Tava, lugar de referência para o povo Guarani, que habita a região das Missões. "É o patrimônio revisto e revisado", afirmou.

A coordenadora do Grupo de Segurança da Câmara Técnica de Preservação do Conselho Nacional de Arquivos - Conarq/Arquivo Nacional, Solange Rocha, fez a palestra "Elaboração de Políticas de Segurança - da realidade à necessidade". Ela falou sobre a elaboração de uma Política de Segurança de Acervos, enfatizando que "os objetivos buscados pela Política têm que estar escrito para que todos tenham acesso". Segundo a pesquisadora, "a Política tem que ser revista pelo menos uma vez ao ano e tem que estar dentro da realidade institucional, conhecendo as pessoas que trabalham no local". Solange Rocha mostrou que acidentes como inundações, deslizamentos de terra, incêndios e etc. podem ocorrer e causar danos patrimoniais grandes. Rocha também alertou que "com a crise econômica, há um aumento natural de furtos a acervos". A pesquisadora do Conarq afirmou que para "minimizar os riscos, são necessários um bom diagnóstico, a elaboração de políticas que ajudem na preservação e segurança, a valoração do acervo, a conscientização da equipe e uma educação patrimonial”.

A seguir, foi a vez de Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, que falou sobre "Experiências traumáticas sobre o roubo de acervos". "O que é roubado não tem preço", afirmou a diretora, que abordou a questão dos roubos de peças, classificado como um "roubo qualificado".  Muitos dos roubos contam com a participação de pessoas da própria instituição, como explicou Beatriz Kushinir: "O mais duro é saber que são pessoas de dentro da instituição que mapeiam o local e passam a informação para o ladrão", afirmou. Ela também relatou que, segundo dados oficiais, "a lavagem de dinheiro do comércio ilícito, seja de armas, drogas e terrorismo, por exemplo, passa pela compra e venda de obras de arte". Para a diretora do Arquivo da Cidade, a situação é preocupante, pois até a Delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (Delemaph), da Polícia Federal tem "que se dividir entre cuidar dos crimes causados ao meio ambiente e os de patrimônio histórico". "Não há uma delegacia exclusiva para cuidar desses crimes", afirmou.

Encerrando as palestras na parte da manhã da terça-feira, José Tavares, diretor da Biblioteca Pedro Calmon, do Fórum de Ciência e Cultura, da UFRJ, falou sobre o roubo na Biblioteca a qual dirige em sua palestra “Labirintos do passado: dos caminhos da Preservação ao furto de Obras Raras da Biblioteca Pedro Calmon, da UFRJ”. Segundo ele, o setor passava por obras quando houve o furto, praticado por Laéssio Rodrigues de Oliveira, considerado pelas autoridades do Brasil, como o maior ladrão de livros raros do país, e sua quadrilha. “Mais de 300 obras foram roubadas pela quadrilha”, afirmou. Segundo Tavares, após o roubo, ele imediatamente levantou todas as obras que foram furtadas e as catalogou no site The Art Loss Register – “fiz isso para que pudéssemos nos garantir, caso as obras furtadas aparecessem em algum leilão. Também entramos em contato com livreiros e leiloeiros”, afirmou. Além das 303 obras raras listadas, sumiram outros 120 livros antigos, conforme matéria do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em abril de 2017. Para o diretor da Bibioteca, o estrago foi bem maior: 389 títulos ou 588 volumes. “Foi criado um grupo de trabalho para analisar uma nova política de segurança do patrimônio. O grupo implementou medidas simples como o reforço de trancas de portas e janelas, controle do inventário e das pessoas que podem acessar o material raro. Após, a prisão de Laéssio, algumas obras foram recuperadas junto à Polícia Civil de São Paulo pela Biblioteca da UFRJ, como cinco livros raros e quatro livros do acervo geral.

Ensino e gestão

Na parte da tarde, o tema foi “Preservação, Segurança e Ensino” e a primeira palestra foi “Curso de Segurança de Acervos Culturais: uma contribuição para a preservação de acervos”, de Lucia Lino, bibliotecária do Museu de Astronomia e Ciências Afins – Mast. Ela explicou a criação do curso de Segurança de Acervos Culturais, em 2003, que abordava a segurança de forma ampla, abrangendo a proteção do acervo, do prédio e das pessoas. Em 2011, o curso foi reestruturado e passou a contar com carga horária de 40 horas e voltado para pessoas com nível superior. Sete anos depois, o curso sofreu nova reestruturação e passou a ser focado no público de nível médio, com disciplinas como Biossegurança em bibliotecas, Tráfico ilícito de bens culturais, Climatologia para análise de riscos ambientais, dentre outras. O curso conta com a parceria do Departamento de Polícia Federal. Além disso, o Mast disponibiliza um mestrado profissional em Preservação de Acervos em Ciência e Tecnologia. Lucia Lino afirmou que o curso oferecido pelo Mast “já recebeu 693 alunos e sempre acolhe pedidos de outros estados, já tendo sido ministrado em 19 estados do país”.

A segunda a falar foi Josy Morais, coordenadora dos cursos de Pós-Graduação em Conservação e Restauro da Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. A coordenadora falou sobre o mercado de trabalho e a necessidade de atualização dos cursos: “a maioria das pessoas formadas têm pouca experiência prática e isto é um problema. Assim, nossos cursos passaram a incorporar aulas práticas e, para este ano, lançamos uma disciplina de ‘Restauro de fotografia’, algo que o mercado já vem pedindo há muito tempo”, afirmou. Para Josy Morais, “é necessário que os profissionais da área se imponham no mercado, para sermos levados a sério e não aconteça o que ocorreu com a conservação e o restauro de algumas obras de arte na Europa”, falou (veja os links ao lado).

Outro palestrante foi Fabiano Cataldo, professor de Biblioteconomia da UniRio, que falou sobre “Políticas de Preservação de Acervos Culturais e História do livro”. Cataldo indagou à plateia: “Quantos acervos contemporâneos estão sendo perdidos pelo falso conceito do que ‘se é novo, não é preciso preservar’? Ele chamou a atenção sobre a necessidade de conservação preventiva com ações integradas e lembrou que “ainda hoje há profissionais que não sabem o que são obras raras”. Cataldo exortou que os cursos de Biblioteconomia incluíssem em seus currículos o tema “Preservação de Acervos”, com o tópico “segurança de acervos”. O professor da UnirRio fez duras críticas ao “uso excessivo de tecnologia”: “Há um excesso de confiança na tecnologia. E a segurança de acervo não passa por tecnologia, ela (a tecnologia) é só um auxílio. Na realidade, ela perspassa as boas práticas de preservação”, afirmou.

Encerrando as palestras da parte da tarde, Ivan Coelho de Sá, professor do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio e diretor da Escola de Museologia, da UniRio, que foi o mediador da parte da manhã, afirmou: “As falas deixam bem claro a falta de políticas públicas de preservação de patrimônio no país”. Segundo ele, “a importância da preservação – o cuidado no manuseio, a mantuenção e as técnicas de higienização estão incluídas na preservação preventiva, e não podem ser negligenciadas”. Coelho de Sá destacou que “ao falarmos de preservação e segurança, o que salva é o profissional abnegado que vai resistir bravamente à falta de recursos, com seu profissionalismo”.

Práticas e soluções

O dia terminou com apresentações de Maria Claudia Santiago, chefe da Seção de Obras Raras, da Biblioteca de Manguinhos, e Sátiro Nunes, chefe da Mapoteca Histórica do Itamaraty. Maria Claudia Santiago abordou “Caso Fiocruz: histórico, repatriação e segurança preventiva”, e falou sobre o roubo ocorrido em 2007, quando foram furtadas 250 obras, e dessas, recuperadas 138. Ela também explicou que, após o furto, foram implementadas normas como maior controle de acesso, realização de registros de ocorrências, orientação ao usuário e medidas para evitar a rotatividade de pessoal. Maria Claudia afirmou que “a Seção hoje conta com um registro completo de qualquer obra rara de seu acervo, o que pode ser utilizado como prova de procedência”. Neste registro completo são considerados o livro de tombo, catálogos, digitalização e microfilmagem, marcas de propriedade e de exemplar, além de registros de intervenções e catalográficos.

Roubos e mutilações de obras no Itamaraty foram o principal tema da apresentação de Sátiro Nunes. Ele falou do furto ocorrido no final de julho de 2003, quando uma quadrilha levou – segundo dados do Conselho Internacional dos Museus (Icom), publicados no jornal da Folha de S. Paulo, 2.066 peças, que incluíam cerca de 150 mapas e ‘pelo menos’ 500 fotografias. O local, fechado ao público, tinha acesso permitido a pesquisadores e funcionários. Nessa época, Nunes não trabalhava na instituição, mas ele afirmou que, após o roubo, medidas de segurança foram tomadas. Mesmo assim, Nunes chamou a atenção de todos para o tipo do roubo: “um dos mapas tinha dois metros. Como esses objetos foram roubados? São questões complexas, que não temos respostas.”

Leia também a segunda parte da cobertura do I Encontro de Segurança de Acervos Culturais aqui

Créditos:

Fotos: Rodrigo Méxas - Multimeios/Icict | Montagem 1: Graça Portela - Ascom/Icict

Fotos: Gilmar Moraes - Preservação/Icict | Montagem 2: Graça Portela - Ascom/Icict

 

Assista aqui os vídeos do primeiro dia de palestras: I Encontro de Segurança de Acervos Culturais 07/08/2018 parte I

I Encontro de Segurança de Acervos Culturais 07/08/2018 parte II

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Galeria de fotos

I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Fotos: Rodrigo Méxas - Multimeios/Icict/Fiocruz
I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Tânia Santos, Mônica Garcia e Marcelo Lima - Fotos: Rodrigo Méxas - Multimeios/Icict/Fiocruz
I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Márcia Chuva - Fotos: Rodrigo Méxas - Multimeios/Icict/Fiocruz
I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Beatriz Kushnir e Solange Rocha - Fotos: Rodrigo Méxas - Multimeios/Icict/Fiocruz
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I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Lucia Lino e Ivan Coelho de Sá - Fotos: Rodrigo Méxas - Multimeios/Icict/Fiocruz
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I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Fotos: Rodrigo Méxas - Multimeios/Icict/Fiocruz

Arquivos para download

I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - CONARQ

"Preservação e segurança de acervos - Ação do Grupo de Segurança do Conselho Nacional de Arquivos - Conarq". I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Dias 07 e 08//08/2018

I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - José Tavares

"Labirintos do Passado: Dos Caminhos da Preservação ao furto de Obras Raras da Biblioteca Pedro Calmon da UFRJ" - José Tavares. I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Dias 07 e 08//08/2018

I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Lucia Lino

"Curso de Segurança de Acervos Culturais: uma contribuição para a preservação de acervos" - Lucia Lino - I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Dias 07 e 08//08/2018

I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Maria Claudia Santiago

"118 Anos da Biblioteca de Manguinhos - Do Barracão ao Castelo" - Maria Claudia Santiago. I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Dias 07 e 08//08/2018

I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Solange Rocha

"Elaboração de Políticas de Segurança - Da realidade à necessidade" - Solange Rocha. I Encontro de Segurança de Acervos Culturais - Dias 07 e 08//08/2018

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Para saber mais

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
CEP: 21040-900 | Tel.: (+55 21) 3865-3131 | Fax.: (+55 21) 2270-2668

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