Lei de Proteção de Dados: é fundamental analisar mudanças com cautela

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Assessoria de Comunicação do Icict/Fiocruz
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30/04/2019

Quando uma pessoa recorre a uma emergência médica, seja ela da rede privada ou do SUS, suas informações em geral passam a integrar um banco de dados. Um rol de detalhes pessoais que incluem não apenas endereço e nome completo, mas também os resultados de exames, o diagnóstico e os remédios prescritos no tratamento. Quando um consumidor está no caixa de uma farmácia e é incitado a fornecer seu CPF em troca de um desconto, as informações sobre sua compra também passam a integrar uma base de dados.  

O uso que é feito dessas redes de informações, porém, pode desdobrar-se em alternativas de naturezas muito distintas. Por um lado, os bancos de dados da área da saúde podem ser insumos preciosos para pesquisas e políticas públicas. Podem ser usados, por exemplo, para definir padrões epidemiológicos. Para indicar a necessidade de desenvolvimento de novos fármacos ou terapias.  Ou para ampliar o conhecimento a respeito de doenças, sintomas e prevenção. Por outro lado, porém, podem ser usados pelo mercado privado da saúde em sua busca por gerar mais lucro – sendo repassados e vendidos a grupos empresariais, por exemplo, que vão usar esses dados para extrair vantagens econômicas. 

Além disso, há uma questão ética envolvida no uso dos bancos de dados da saúde. Abrangem, afinal, informações de cunho íntimo. Caso esses bancos de dados não tenham algum tipo de proteção, quem pode garantir a privacidade de uma mulher que foi atendida num hospital após sofrer um aborto ou uma violência sexual? Ou de pessoas com doenças estigmatizantes, que optam por manter o anonimato?

É por isso que a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709), de 2018, representou uma importante conquista para a privacidade dos brasileiros, ao estabelecer regras que determinam como esses dados podem ser coletados e tratados, e prevendo punições para transgressões. A lei foi aprovada em agosto de 2018, mas em dezembro do mesmo ano foi modificada pela Medida Provisória 869, que, entre outras coisas, flexibiliza o compartilhamento de dados de saúde pelo setor suplementar – o que tem sido visto como um retrocesso por especialistas que trabalham na interseção entre comunicação e saúde pública. Pelo texto original da lei, esse compartilhamento só poderia ser feito com a autorização dos pacientes.

“Algumas mudanças propostas pela MP e por suas emendas podem colidir com os objetivos originais da lei”, aponta Rodrigo Murtinho, diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), que foi um dos participantes da série de audiências públicas sobre a MP 869, organizada pela comissão mista que avalia o tema em Brasília. Murtinho integrou a consulta “Compartilhamento e proteção de dados na saúde e na pesquisa científica”, realizada na quarta-feira (17/4).

Riscos à privacidade dos brasileiros

Em sua fala, ele celebrou a Lei 13.709 como uma importante contribuição para a construção da cidadania, ao garantir a proteção de dados pessoais, sobretudo a dos grupos mais vulneráveis na relação com o Estado e com o setor privado. Mas também destacou a preocupação do Icict com as mudanças e a forma como podem enfraquecer o direito à privacidade. Isso parece ocorrer principalmente no artigo 11, parágrafo quarto, inciso 2, que prevê a possibilidade de compartilhamento dos chamados “dados pessoais sensíveis” diante da “necessidade de comunicação para a adequada prestação de serviços de saúde suplementar”. “Essa proposição parece alicerçada, a nosso ver, em uma argumentação muito genérica, e pode levar à violação de princípios contidos na lei. Isso precisa ser examinado com cuidado”, alertou o diretor do Icict. 

“Outra preocupação é a proposta de mudança no artigo quinto, inciso 18, que pode descaracterizar a definição de órgão de pesquisa, juntando na mesma definição instituições que atuam com naturezas e objetivos bastante distintos”, complementa. Ele se refere à parte da lei que define o que são órgãos de pesquisa e que, no texto original, os define como “sem fins lucrativos”. Caso a definição se torne mais ampla, pode permitir o tratamento dos dados pessoais sensíveis por instituições com interesses econômicos – o que seria um risco enorme à privacidade.

Murtinho também reiterou a necessidade de que seja instituída uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados que possa atuar com transparência e autonomia. A criação da Autoridade está prevista na MP, mas está em debate se ela estará subordinada a alguma instância do governo federal, como a Casa Civil, ou se poderá atuar de forma independente.  O diretor do Icict defende que manter sua independência seria fundamental para garantir segurança na proteção dos dados – à semelhança do que ocorre na lei em vigor na União Europeia. 

Além disso, a criação dessa Autoridade seria muito importante para as relações internacionais da ciência brasileira. “Hoje o mundo vive o debate sobre a abertura de dados de pesquisa. E vários organismos internacionais e instituições que financiam pesquisas - inclusive no Brasil - estão regidos por legislações como a da União Europeia, por exemplo, que exigem uma série de normas [de proteção de dados] para que esses convênios possam ser realizados."

O diretor do Icict destacou como a informação precisa ser encarada em seu sentido mais amplo, insumo básico não só para a pesquisa e para a promoção da saúde. “A Fiocruz e o Icict compreendem a informação como um direito humano, fundamental para a efetivação do direito à saúde e à cidadania plena. Portanto, essa lei deve se consolidar no estrito limite entre a garantia do avanço da pesquisa e da saúde da população e a garantia da proteção de dados dos cidadãos.”

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