Acesso aberto à redemocratização

por
Adriana Martins
,
02/03/2015

Publicações resgatam contexto político do Brasil na década de 80


Com o declínio do regime militar, em meados da década de 1980, o Brasil foi palco de diversas manifestações. Em muitos estados, parte da população lutava pela redemocratização do país. Passeatas, debates e atos públicos engendravam as ações dos movimentos. No campo da saúde não era diferente. Cientistas, pesquisadores, intelectuais e outros cidadãos militantes discutiam alternativas para a área, como parte da chamada Reforma Sanitária.

À época, na Fundação Oswaldo Cruz, ascendia uma personalidade que deixaria um legado de democracia, igualdade de direitos e um olhar mais atencioso sobre a saúde pública: o médico e sanitarista Sergio Arouca, que ampliou as vozes do movimento pela Reforma Sanitária.

Sérgio Arouca, de óculos, à frente. (Foto: Banco de Imagens/COC/Fiocruz)

Muitas pessoas que não acreditavam fielmente no que dizia a imprensa tradicional buscavam dados em veículos alternativos. Neste sentido, na Fiocruz, um grupo heterogêneo de pensadores dava início a uma política de comunicação, pensando em como seria possível comunicar e informar sobre saúde.

Foi assim que surgiu em Manguinhos, no Rio de Janeiro, um programa de comunicação que viria contribuir para disseminar as vozes dos protestos. O Radis – Reunião, Análise e Difusão de Informações sobre Saúde – nasce em 1982. Com seus periódicos Súmula, Dados, Tema e Jornal Proposta, o programa de comunicação priorizava a saúde, enfatizava a prevenção e os determinantes sociais e acompanhava as lutas do movimento sanitário. Enfim, por meio de reportagens reflexivas, tentava dialogar com a população sobre o estado da saúde brasileira naquele momento.

Quase 30 anos depois, os interessados em saber um pouco mais sobre o programa, bem como sua relação com as esferas política, cultural, econômica e de saúde, poderão acessar as primeiras coleções do Radis. Com o objetivo de preservar um dos mais significativos momentos das mobilizações sociais no Brasil, a Biblioteca Virtual Sergio Arouca buscou no acervo do programa as publicações mais representativas para a época e que, até hoje, dão fôlego a estudos e pesquisas sobre democracia, sociedade, comunicação e saúde.

Acervo bibliográfico reúne revistas e jornais atuantes nos movimentos da Reforma Sanitária

A BV, que é coordenada pelo Icict/Fiocruz, priorizou registros da atuação do sanitarista Arouca no período em que presidiu a Fundação. “Estão sendo escolhidos os documentos que relacionem Arouca e seus debates sobre o movimento sanitário”, diz a bibliotecária Luciana Danielli, coordenadora das Bibliotecas Virtuais em Saúde bvsfiocruz.fiocruz.br na Fiocruz. Assim, estão disponíveis em acesso aberto no site desta BV as revistas Súmula, Dados e Tema, além do Proposta – Jornal da Reforma Sanitária, publicados entre os anos 1985 e 1989. Por ser um trabalho contínuo, o acervo é constantemente atualizado pela equipe da Biblioteca de Saúde Pública, na BVS Arouca.

Primeiras manchetes apresentam dados importantes sobre a saúde brasileira

Pioneiros em debates sobre a Aids, por exemplo, os periódicos do Radis ofereciam informações sobre temas que ainda eram pouco discutidos naquele período. É o caso da Dados – dedicada ao acompanhamento crítico e problematizado de estatísticas da saúde, por meio de análises epidemiológicas e conjunturais –, que trouxe, em sua 11ª edição, de março de 1988, um alerta para “O retrato da Aids”.

Naquele número, a publicação realçava a magnitude do problema, com números de infectados e informações sobre a disseminação. “A Aids, conforme dados apresentados à Organização Mundial de Saúde (1987), está nos dias atuais, mundialmente disseminada”, diz a reportagem. “Até 25 de novembro de 1987, dos 68.217 casos de Aids notificados à OMS, 52.136 (74,4%) eram das Américas”. A mesma reportagem mostrava que, à época, o Brasil era o quarto país do mundo com maior número de casos da doença, perdendo apenas para Estados Unidos, França e Uganda.

Já a revista Súmula tinha a proposta de fazer um acompanhamento crítico do que a imprensa tradicional noticiava. Em seu primeiro número, a publicação lançou a manchete: “Pólio, o êxito das campanhas”. A reportagem atentava para a importância das campanhas de vacinação, já que a poliomielite tinha apresentado queda considerável em 1980. “Outro fator considerado estratégico pelos especialistas em saúde é a conscientização da população para a importância da vacinação”, dizia. E o resultado das campanhas: “Quase 20 milhões de crianças vacinadas”.

A primeira edição da Tema falava na importância de se incentivar a população na participação comunitária na regionalização e municipalização dos serviços de saúde. Uma das chamadas trazia: “População terá direito de intervir no sistema” e uma expressão de peso do então ministro da Previdência Social, Raphael de Almeida Magalhães: “só com o acesso sem barreiras às informações de interesse comum, poderemos caminhar com segurança para a superação dentro das AIS [Ações Integradas de Saúde]”. Esta revista era mais reflexiva: com entrevistas e artigos, propunha debates em torno de temáticas pré-definidas.

Em 1987 nasce a quarta publicação: o Proposta – Jornal da Reforma Sanitária divulgava e debatia as teses do movimento. “Reforma não é uma simples transferência de recursos”, chamava a manchete do primeiro exemplar. Expressões como “O movimento sindical entende o seu papel”, “A reforma removerá o entulho sanitário” e “O trabalhador deve ter poder de decisão” enfatizavam a defesa por mudanças no sistema de saúde brasileiro. Ao todo, as quatro publicações somaram 179 edições até o ano de 2002, quando os periódicos passaram a integrar uma única revista mensal – a Radis, que chegou à 136ª edição em janeiro de 2014.

O programa foi marcante na construção de um campo Comunicação e Saúde – como hoje o conhecemos. “O Radis, quando foi criado, em 1982, tinha característica mais acadêmica. As edições selecionavam reportagens de jornais tradicionais e debatiam as questões, usando o conceito ampliado de saúde, falando em condições de vida, transporte público, salários, etc., além de apresentar análises epidemiológicas e conjunturais sobre os dados da saúde”, afirma o coordenador do Radis, Rogério Lannes.

Por um acesso aberto à redemocratização

No início, quem elaborava o conteúdo das publicações eram, em geral, economistas, sociólogos e sanitaristas - não necessariamente jornalistas. A ideia de recrutar profissionais de comunicação para dar um novo aspecto ao Radis veio na gestão de Arouca. “Os pesquisadores da Fiocruz achavam difícil falar sobre ciência, saúde e política à população mais leiga, o que impedia que um campo de comunicação e saúde se desenvolvesse. Com a redemocratização isto foi mudando. Os fatos que aconteciam pelo Brasil iam ficando um pouco mais transparentes. A população queria saber o que estava acontecendo e propor debates. Havia quem não estava satisfeito com a mídia tradicional e buscava informações em veículos alternativos”, avalia o diretor do Icict, o jornalista Umberto Trigueiros.

(Fotos: Vinícius Marinho)

As publicações do programa eram muito úteis nos debates da Reforma Sanitária. Serviam também como um tipo de agenda para a população saber quando ocorreriam novos debates, votação de projetos, reuniões, congressos, etc. Enfim, pontuavam fatos relacionados aos determinantes sociais de saúde/doença e abriam discussões sobre as políticas e ações em saúde no país.

“Um dos preceitos da Reforma Sanitária era que a saúde é uma questão política e democrática, que diz respeito à autonomia da cidadania e da sociedade. Era aí que o Radis buscava intervir por meio dos debates: pensávamos em como mobilizar ainda mais quem já estava se mobilizando e reforçar a importância da participação do público nos debates no Congresso Nacional para defender a redemocratização do país”, ressalta Rogério Lannes.

Comunicação e saúde

Um ano depois de ser indicado para a Fundação, Sergio Arouca preside a 8ª Conferência Nacional de Saúde – o que foi um marco, um divisor de águas para os movimentos da reforma. Muitos aspectos foram discutidos, entre eles os princípios e os ideários da reforma, além do próprio direito de comunicar. Esta visão do sanitarista, somada às reflexões que a conferência proporcionou, foram essenciais para a criação do campo da Comunicação em Saúde, como o conhecemos hoje.

Em mais de três décadas, as publicações do Radis passaram por reformas gráficas, ampliação de conteúdo, público e periodicidade, sem desviar da linha editorial original. A revista Radis é enviada gratuitamente pelo correio para mais de 80 mil assinantes, em todas as cidades brasileiras, entre usuários, trabalhadores, gestores, conselheiros, estudantes e professores de saúde, bibliotecas, universidades, veículos de comunicação, governantes, parlamentares, sindicatos e movimentos sociais. No site, a versão on-line pode ser lida no dia primeiro de cada mês. O pioneiro Programa Radis continua sendo, hoje, um exemplo de jornalismo de qualidade, crítico e de coerência e independência na defesa do direito à saúde e à comunicação e do pleno exercício da cidadania, para o aprofundamento da democracia no Brasil.

Outras matérias

Para saber mais

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
CEP: 21040-900 | Tel.: (+55 21) 3865-3131 | Fax.: (+55 21) 2270-2668

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