Aula inaugural da Fiocruz relembra golpe de 1964

por
Cristiane d'Avila
,
20/03/2014

Foi realizado na manhã de terça-feira (18/3), como parte do evento de abertura do ano letivo da Fiocruz, o painel “Os Anos de Chumbo na Fiocruz e a Comissão da Verdade da Reforma Sanitária”. Coordenado pelo diretor do Icict, Umberto Trigueiros, membro da CVRS, o painel contou com a participação de Anamaria Tambellini, presidente da Comissão da Verdade da Reforma Sanitária (CVRS), Lia Geraldo, representante da Abrasco na CVRS, Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e membro da CVRS, Renato Cordeiro, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e membro da CVRS e Ana Costa, presidente do Cebes e também membro da CVRS. Seguem abaixo alguns trechos dos depoimentos dos participantes.

Umberto Trigueiros

"Estamos abrindo o ano letivo com esse tema “Ciência e Democracia” e a apresentação da CVRS, como também a temática, me remetem a uma frase do Arouca (Sergio Arouca, ex-presidente da Fiocruz), que dizia que o maior inimigo do pensamento totalitário é o pensamento livre. Isso é verdade, pois logo após o golpe as universidades e os centros de pesquisa foram atingidos brutalmente por ações conservadoras, retrógradas, que causaram muitos danos à ciência desse país.

Éramos um país bastante promissor, tínhamos ministros como Celso Furtado, Darcy Ribeiro, San Tiago Dantas, e todos foram atingidos, foram perseguidos, assim como todos os pesquisadores de outros centros como a Fiocruz. Então para que mexer nessas supostas cinzas? Para construir uma sociedade melhor, para que essas ações não continuem se repetindo, para que as populações marginalizadas sejam respeitadas. Precisamos construir um país melhor.

Eu tinha 16 anos quando aconteceu o golpe, era membro da Federação dos Estudantes Secundaristas de Niterói, capital do Estado. Vivíamos um país em grande ebulição, em que os jovens se interessavam pela realidade brasileira. O golpe veio se gestando anos antes, mas nós não tínhamos a dimensão do que iria suceder após o 1º de abril. Naquele dia, achamos que podíamos resistir, mas não imaginávamos que um turbilhão iria arrastar a vida dos jovens que decidiram enfrentar aquela situação. Isso nos levou à clandestinidade, à tortura e à morte. Isso só tem sentido se enfrentarmos os problemas do país hoje e construirmos um futuro diferente".

Hermano Castro

"Precisamos desmistificar um pouco essa questão dos 50 anos que se cristalizam no golpe - apoiado por civis também -, pois precisamos entender o que se perpetua e o que mudou nesses anos. Vivemos uma ditadura por 21 anos, cujo sentido era fazer com que o país assumisse uma postura econômica que permanece até hoje. Agora, a violência brutal que se abate sobre a população não é muito diferente. Ela atinge a classe média, mas principalmente as classes marginalizadas que se aglomeram nas grandes cidades, que são atacadas pela violência da própria sociedade e do estado. Quando falamos em resgatar a memória e a história é para que se transformem em ações concretas hoje, para impedir que trabalhadores não sejam arrastadas por um carro do Estado brasileiro, como vimos acontecer com aquela moça esta semana no Rio.

Quando falamos no Massacre de Manguinhos (em que pesquisadores da instituição tiveram seus direitos políticos suspensos e foram aposentados) estamos nos referindo ao atraso em tecnologia que tivemos por causa desse fato. O que seria desse país se esses grandes nomes não tivessem sofrido perseguições e prisões? São décadas que se perderam, hoje também nos deparamos com o poder dos grandes capitais, que nos fazem de laboratórios e quintais para suas experimentações. A CVRS vai ser um ensinamento para nós, pois precisamos resolver grandes problemas em nossa sociedade, que precisa ser dona do seu próprio destino".

Lia Geraldo

"A Abrasco nasceu naqueles anos de chumbo, formada, principalmente, por intelectuais do partido comunista. Vivíamos duas grandes vertentes de luta, a redemocratização do país e a construção das políticas de saúde que tornassem possível construir um sistema humano e universal para o nosso povo. Essa foi a questão fundante dessa intelectualidade engajada. Essa longa construção de um sistema de saúde, que está em revisão, foi um consenso sobre o que queríamos em termos de reforma sanitária. Construir o campo da saúde coletiva de forma respeitada no mundo acadêmico é um processo contínuo que damos sem abrir mão do mundo político, das reivindicações sociais, do trabalho no interior do aparelho de Estado. Essa é uma característica da Abrasco. É um privilégio sermos um militante integral, desse ponto de vista".

Ana Costa

"O Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) nasce em meio à ditadura, com a clara missão de agregar resistência à ruptura democrática que nós vivíamos, ao medo ao qual fomos submetidos, que nos fazia constranger o pensamento livre, o pensamento crítico.

O Cebes nos faz entender que a saúde é resultado de uma construção democrática, de produção de bens e serviços que qualificam a vida, mas também que a saúde articula com a democracia a capacidade de garantir justiça social. Esse sentido do Cebes vem se mantendo ao longo dos últimos 40 anos. Não damos a tarefa por cumprida, pois a força dos setores aos quais não interessa justiça, direitos, sociedades mais equitativas, é permanentemente fortalecida. Em nome das forças conservadoras, do capital, vivemos toda a violência do Estado, vivemos tantos anos sem organização política, sem partidos, essa fragilização da cultura política participativa é o sentido da luta do Cebes. Abominamos toda forma de violência contra as pessoas, de forças públicas que trazem escândalos e dores a tantas famílias. Essa comissão é necessária para que renovemos nossa capacidade de resistir, nossa indignação, para que tenhamos força para pensar o que devemos fazer".

Anamaria Tambellini

"Estou aqui hoje para apresentar a proposta da CVRS, que é saber o que se passou nesse período, coletivizar a experiência dos que viveram aquela experiência e suas interpretações sobre esse tempo.

Por que uma comissão da verdade? Isso só se tornou possível no momento em que a Comissão Nacional da Verdade observou que não poderia sozinha dar conta do que aconteceu nesse período. Essa possibilidade nos fez pensar por que não fazer uma comissão da verdade da saúde.

Nosso objetivo é identificar todos os trabalhadores de saúde que tiveram seus direitos violados, fossem eles do setor público ou privado. Queremos saber quais foram as consequências destes atos nas vidas desses violados, em sua saúde, no seu trabalho. Queremos saber como as instituições de docência, de pesquisa, agiram naquele momento. É uma proposta nossa saber quem foram esses que ajudaram a ditadura. Não queremos saber pouco, queremos saber tudo.

Montaram-se aparelhos repressivos nas instituições. A Petrobras tinha um aparelho repressivo fenomenal. A Fiocruz fez isso também. Temos que saber os mecanismos pelos quais um país inteiro ficou aprisionado numa ditadura. Essa comissão não vai julgar ninguém, vamos estudar os casos e enviar para as instâncias de direito.

A  Asfoc, o sindicato da Fiocruz, vai internalizar os trabalhos da CVRS na Fundação. Venham trabalhar conosco! Visitem nosso endereço www.cvrs.icict.fiocruz.br Hoje dedico minha vida a essa Comissão".

Renato Cordeiro

"O movimento militar de 64 encontrou o Instituto Oswaldo Cruz dirigido pelo Dr. Joaquim Travassos da Rosa, cientista que tinha feito sua carreira no Instituto Butantã de São Paulo, e tinha substituído Tito Arcoverde Cavalcanti.

Castelo Branco o substituiu, logo em 64, por Rocha Lagoa, um médico medíocre, que também pertencia aos quadros do instituto, mas não possuía nenhuma credencial como pesquisador. Até os órgãos de segurança o rotulavam como mau pesquisador e mau administrador, mas o destacavam como um ativo anticomunista.

Houve pesquisadores e indivíduos em nossa instituição, como em todas as outras, que contribuíram de forma significativa para que o Massacre de Manguinhos (em que pesquisadores da instituição tiveram seus direitos políticos suspensos e foram aposentados) ocorresse. Herman Lent, Haity Moussatché, Walter Oswaldo Cruz, Fernando Ubatuba, foram os primeiros visados da ditadura, creio que por seu prestígio internacional. Absolutamente nada foi comprovado contra eles.

Nessa época, o então ministro da Saúde, Raimundo de Brito, afastou Walter Oswaldo Cruz, grande hematologista, filho caçula de Oswaldo Cruz, Herman Lent, Haity Moussatché, Teixeira de Freitas, Henrique Veloso, Fernando Ubatuba, Hugo Souza Lopes e Massao Goto das chefias das divisões das seções que eles comandavam. Na posse de Rocha Lagoa na presidência da instituição, esse ministro afirmou: “Se é verdade que não há fronteiras para a ciência, também é exato que há fronteiras para os cientistas.  As ideias exóticas que em Manguinhos foram infiltradas serão banidas definitivamente, porque nosso  país precisa de homens que nos ajudem a acabar com o sofrimento do povo e não de elementos cujo único fito é destruir a liberdade, esfacelando o regime democrático. Manguinhos amanhã será uma colmeia de trabalho e não um foco de ideias subversivas. O IOC terá todos os recursos de que carece para suas pesquisas”.

Junto a toda pressão politica, existia nos setores conservadores de Manguinhos a tentativa de desmoralizar a ciência exercida no instituto, tratando-a como uma ciência de segunda categoria, que não valia absolutamente nada.

No dia 1º de abril de 1970, Rocha Lagoa e seus colegas da ditadura no Instituto Oswaldo Cruz conseguiram sua patética vitória. O Diário Oficial de 2 de abril publicou um decreto suspendendo por dez anos os direitos políticos de Moussatché, Herman Lent, Moacir Vaz de Almeida, Augusto Perissé, Hugo Souza Lopes, Sebastião Oliveira, Fernando Ubatuba e Tito Arcoverde Cavalcanti. Em 6 de abril outro decreto foi assinado aposentando os referidos pesquisadores, e acrescentando os nomes de Marçal Goto e Domingos Machado. Carreiras destruídas, laboratórios esfacelados, cooperações nacionais e internacionais bruscamente interrompidas, estagiários expulsos, que foi o meu caso e de muitos outros. Servidores remanejados para outros locais. Foram aposentados com uma pequena porção dos salários da ativa. As universidades particulares tinham pânico de receber os cassados porque o governo cortava verbas do CNPq, da Capes.

Minhas sugestões para a CVRS: abrir os arquivos dos ministros da Saúde da ditadura, principalmente do Raimundo de Brito; abrir os arquivos de Rocha Lagoa, enquanto então diretor do Instituto Oswaldo Cruz e depois como ministro da Saúde do Governo Médici; abrir os arquivos de Leonel Miranda, que foi ministro da Saúde de Costa e Silva; abrir os arquivos de todos os presidentes da Fiocruz antes da gestão de Sergio Arouca; conseguir as cópias dos inquéritos e sindicâncias a que foram submetidos os pesquisadores cassados e de Walter Oswaldo Cruz, que morreu antes da cassação; e promover estudos junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, visando à reparação para as famílias dos cientistas e servidores do quadro de Manguinhos que foram afastados do instituto e prejudicados após a cassação de seus chefes e colegas".

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Para saber mais

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
CEP: 21040-900 | Tel.: (+55 21) 3865-3131 | Fax.: (+55 21) 2270-2668

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