Congruência entre religião e ciência para um Estado Ambiental é tema de artigo de pesquisador do Icict

por
Graça Portela
,
23/07/2015

A última edição do Jornal da Ciência, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) publicada nessa quinta-feira, 23/7, apresenta o artigo "Congruência entre religião e ciência para um Estado Ambiental no atual estágio do Antropoceno", de Carlos Saldanha,  pesquisador do Laboratório de Informação Científica e Tecnológica em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Licts/Icict) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde do Icict (PPGICS).

Carlos Saldanha faz uma análise sobre o meio ambiente, sob a ótica da ciência e da religião, e aborda também o documento papal "Encíclica Louvado Seja", lançada no último dia 18 de junho. Leia abaixo o artigo.

 

Congruência entre religião e ciência para um Estado Ambiental no atual estágio do Antropoceno

 

Em um planeta povoado com mais de 7 bilhões de indivíduos vivendo em um sistema produtivo de riqueza guiado pela busca de maior produtividade e lucratividade, mas sempre com a esperança imediata de uma vida melhor, esse anseio precisa estar associado a uma grande esperança em comum, a de suas ações contemplarem iniciativas de combate ao ascendente processo de degradação ambiental a fim de garantir um prolongamento contínuo da vida das presentes e futuras gerações. Os indivíduos precisam se agarrar a essa esperança porque, no atual estágio do Antropoceno, nós nos encontramos, como já frisamos em artigo anterior (Altruísmo pragmático face ao desenvolvimentismo  brasileiro na Era do Antropoceno), em uma situação existencial de risco potencial de extinção: confiar que as coisas irão melhorar se agirem de forma proativa é não cair na depressão ao imaginar um desfecho trágico diante de imagens fortes da destruição do ambiente em que vivemos, sobretudo com mudanças irreversíveis como a extinção das espécies, uma dimensão da realidade de domínio público. A esperança na reversão do processo de degradação ambiental com aquecimento global é a virtude que nos ajuda a ter a confiança de alcançar uma vida perene com a ajuda de todos os indivíduos conscientes dos limites de sua existência no Antropoceno e praticando o altruísmo de forma pragmática para se antecipar aos imponderáveis da vida no futuro, ocupando um lugar entre o físico e o social, em sua acepção mais ampla (MACHADO e VILANI, 2015).

Mas o futuro não pode ser deixado sem data e indefinido, porque, em toda parte, o tempo regula as vidas humanas, mesmo com o fluxo de informação e comunicação comprimindo as diferenças de tempo e espaço. Paradoxalmente, em uma sociedade tecnológica como a nossa, com o tempo sendo regulado com precisão de horas e minutos, vivemos, ironicamente, como se fossemos uma sociedade não tecnológica anterior à Revolução Industrial, ou seja, com as forças da natureza na maioria das vezes parecendo imprevisíveis: são os acontecimentos adversos que interferem nas vidas humanas e exigem atenção, com a repetição da marcha diária do Sol e a sequência das estações.

Diante dessa dinâmica, entre acontecimentos históricos no espaço terrestre e a marcha diária do planeta com seus movimentos de rotação (girar em torno de seu próprio eixo) e translação (girar ao redor do Sol junto com os outros planetas) no espaço sideral (aquele que transcende a atmosfera terrestre), observa-se narrativas de tipo criacionista que pressupõem a intervenção de um ser superior ao homem, o qual “cria” o mundo e o “ordena”, resgatando a realidade de uma situação como de caos primordial. No caso da narrativa bíblica – demograficamente predominante no Brasil entre os cristãos de diferentes igrejas e seitas como a Luterana, Reformada, Anabatista, Anglicana, Assembleias de Deus, Aliança Cristã e Missionária, Nazarenos, Evangélica Livre, Igrejas Bíblicas independentes, Mórmons, Testemunhas de Jeová, entre outras –, Deus opera sobre o caos preexistente, determinando a emergência das realidades cósmicas singulares por meio de uma palavra de comando. Sua virtude criadora assume frequentemente os aspectos de poder mágico, semelhante ao dos bruxos e dos xamãs, que tiram do nada a realidade e que a modificam com o gesto ou com a palavra. Alguns cristãos dizem que conseguem ver evidências das bênçãos de Deus nesse mundo. Mas, no atual estágio da Era do Antropoceno, as vivências individuais diante do paroxismo da degradação da natureza, i.e., a mudança climática global, revelam uma ampla aceitação das palavras de mulheres e homens de ciências e de tecnociências com suas narrativas sobre os riscos a que estamos perigosamente sujeitos, com um futuro incerto, e que temos que enfrentar hoje para tornar nossas vidas perenes amanhã; sobretudo os pobres, os mais vulneráveis, ??e os menos capazes de se adaptar como as pessoas idosas e crianças, que são os mais atingidos.

De fato, o homem tem a necessidade de postular não tanto um tempo e um espaço constantes quanto uma constância do real, para poder organizar o seu próprio tempo, o seu próprio espaço e, de modo mais geral, a sua própria realidade, coabitando nos indivíduos de uma sociedade industrializada e desigual como a brasileira o conforto psicológico proporcionado pela secular narrativa criacionista e o realismo pragmático induzido pela força das evidências científicas divulgadas diariamente. Congruência entre religião e ciência diante de um conjunto enorme de fatos que se relacionam de maneira complexa, porque o homem comum, mesmo mergulhado em uma condição humana material e culturalmente modesta em um mundo com desastres naturais, e sem ocultar sua crença religiosa e apego existencial à Bíblia, está interessado em uma realidade quotidiana equilibrada entre fé e razão, i.e., entre tradição e modernidade, enquanto aguarda o paraíso na Terra ser restaurado por Deus, em um futuro sem data prevista, mas, certo de sua realização porque a Bíblia e o Novo Testamento garantem que Ele cumprirá a sua promessa. Nesse ínterim, milhares de humanos praticantes dessa religião continuam morrendo sem terem conseguido testemunhar a realização dessa promessa!

Reconhecendo a gravidade dessa situação e da condição humana moderna no tempo presente, o líder mundial da Igreja Católica Romana, o Papa Francisco, editou no dia 18 de junho do corrente ano a Encíclica Louvado Seja (http://bit.ly/1GmMPLj), dirigida aos Patriarcas, Arcebispos, Bispos, Presbíteros, Filhos e Filhas da Igreja, os fiéis. Por meio de certo consenso entre linguagem da ciência e linguagem da fé, a encíclica não define um dogma, mas atualiza a doutrina católica através de um tema, há meio século na ordem do dia, a degradação ambiental com aumento da pobreza, sendo vista, doravante, como a posição da Igreja Católica. Em um documento de 192 páginas, o Papa faz um apelo para que a humanidade enfrente o desafio de proteger nossa “casa comum”, que requer a união de toda família humana na busca do desenvolvimento sustentável e integral. A encíclica acredita que a humanidade tem a capacidade de colaborar na construção de uma casa comum. Através desse convite para que todos os cristãos (católicos e evangélicos) retomem o diálogo sobre o modo pelo qual estão construindo o futuro do planeta de forma arriscada, a disseminação da prática do altruísmo pragmático (ver o artigo anterior) passa a ser facilitada para que possamos dar conta de uma questão política central para todos os homens: construir um mundo comum de forma colaborativa e sustentável. Após 2 mil anos de existência, a Igreja Católica fez História ao dedicar uma encíclica ao meio ambiente aproximando ciência e religião!

Não obstante, vivendo na “cidade terrestre”, e menos apegado a promessas e a cartas de boas intenções, assumo com o altruísmo pragmático a perspectiva republicana já enunciada por mim em 2014, no livro Desenvolvimento sustentável para o Antropoceno (p. 47), de que precisamos agir durante nossa existência porque fazemos parte efetiva e afetiva do planeta Terra, enraizando nossas vidas em um pedaço de terra, numa determinada região, com a qual ou na qual nos sentimos mais intimamente identificados, sem nunca esquecer que nós não somos “o homem”, mas um homem entre tantos outros que habitam este planeta, porque “a pluralidade é a lei da Terra” (ARENDT, 1981), é a possibilidade de soluções diferentes para um mesmo problema em um mundo comum. Em função da biografia individual e das circunstâncias que definem os contextos sociais específicos nos quais vivem os indivíduos, empreender ações para a reversão do aquecimento global, movidas por um altruísmo pragmático, ou um amor consciente da fragilidade das coisas humanas e visando preservar o mundo comum, é participar da governança climática em um Estado Ambiental de maneira ativa, fraterna e solidária com as gerações futuras, com liberdade de crença, religiosa ou não, uma das liberdades prescritas na Constituição de 1988 (MACHADO e VILANI, 2015).

No Estado Ambiental, no qual convivem seguidores de convicções religiosas e ideológicas diferentes, ou mesmo opostas, apenas pode assegurar suas coexistências pacíficas quando ele mesmo se mantém neutro nas questões religiosas. A cooperação e articulação em um pacto existencial para a redução da emissão de gases de efeito estufa no presente, para assegurar a vida humana no futuro, faz parte desse grande contrato climático que, de tempos em tempos, precisará revisar suas cláusulas, ainda que seu objetivo seja claro e imutável.

Carlos José Saldanha Machado também é membro do Comitê de Assessoramento de Engenharia e Ciências Ambientais (CA-CA) do CNPq (2014-2018)

Referências

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981. (1. ed. 1958.)
MACHADO, C. J. S. Desenvolvimento Sustentável para o Antropoceno. Rio de Janeiro: E-papers, 2014.
MACHADO, C.J.S; VILANI, R.M. Governança Climática no Antropoceno: da rudeza dos fatos à esperança no Brasil. Rio de Janeiro: E-Papers, 2015 [no prelo].

 

Comentar

Preencha caso queira receber a resposta por e-mail.

Assuntos relacionados

"Pensar o mundo em que vivemos sem dissociar a história da Terra da história da humanidade"

Em entrevista, Carlos Saldanha fala sobre o seu livro "Desenvolvimento Sustentável para o Antropoceno"

Pesquisador do Icict lança livro sobre desenvolvimento sustentável dia 30/10

“Desenvolvimento Sustentável para o Antropoceno”, livro de Carlos Saldanha, traz nova abordagem sobre a relação meio ambiente e sociedade

Para saber mais

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
CEP: 21040-900 | Tel.: (+55 21) 3865-3131 | Fax.: (+55 21) 2270-2668

Este site é regido pela Política de Acesso Aberto ao Conhecimento, que busca garantir à sociedade o acesso gratuito, público e aberto ao conteúdo integral de toda obra intelectual produzida pela Fiocruz.

O conteúdo deste portal pode ser utilizado para todos os fins não comerciais, respeitados e reservados os direitos morais dos autores.

logo todo somos SUS