‘O Massacre de Manguinhos’: livro sobre perseguição da ditadura à ciência ganha nova edição

por
Assessoria de Comunicação do Icict/Fiocruz
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23/05/2019

O golpe militar de 1964 inaugurou um período de perdas incalculáveis para a ciência nacional. Na Fiocruz — que, na época, chamava-se Instituto Oswaldo Cruz (IOC) —, os anos de chumbo causaram a interrupção de inúmeras pesquisas, o aniquilamento de laboratórios, prejuízos irrecuperáveis em coleções biológicas, a suspensão de colaborações com outros centros de pesquisa. E houve, também, a perseguição a cientistas. Com a imposição de um diretor designado pelo próprio regime e a presença constante de militares no campus, os pesquisadores passaram a ter suas atividades controladas e suas verbas de pesquisa cortadas. Muitos deles foram arrolados em inquéritos, sob o pretexto de se apurar atos de subversão e corrupção.


Os cientistas cassados (Foto: Acervo Fiocruz)

No dia 1º de abril de 1970, sem que absolutamente nada fosse provado contra eles, dez cientistas da instituição foram cassados pela ditadura militar, com base no AI-5. Tiveram seus direitos políticos suspensos e foram impedidos de trabalhar no IOC e em outras instituições federais. O episódio ficou conhecido como Massacre de Manguinhos. Herman Lent, referência mundial no estudo de besouros, o inseto transmissor da doença de Chagas, foi um dos cientistas cassados. Anos depois, registrou num livro, de forma clara e objetiva, os inquéritos, as indagações, punições, circulares, restrições, pressões e transferências, que causaram enorme prejuízo à ciência. Mas, também, a mobilização e a resistência dos cientistas, que enfrentaram as agressões insistindo na criação de um Ministério para a Ciência. O Massacre de Manguinhos, publicado em 1978 pela Avenir Editora, logo tornou-se referência para os estudos sobre o impacto da ditadura militar na atividade científica realizada no Brasil. A capa, criada por ninguém menos que o arquiteto Oscar Niemeyer, exibia a ilustração do Castelo Mourisco, símbolo mais marcante da Fiocruz, com uma de suas torres desmoronando.

Esgotada há vários anos, a obra agora vem a lume novamente numa edição ampliada, com textos de pesquisadores que contextualizam o caráter histórico do episódio, e fotos e reproduções de jornais da época, num trabalho capitaneado pelo Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict/Fiocruz). A nova edição de O Massacre de Manguinhos vai ser lançada na próxima terça-feira (28/5), às 9h, no Auditório do Museu da Vida, no campus Fiocruz. Haverá uma roda de conversa com o tema “Ciência e Democracia”, com os pesquisadores que colaboraram nesta reedição: Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz e autora do prefácio, Wanda Hamilton, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), e Renato Cordeiro, cientista do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), que assinam os posfácios. Além deles, integram o debate Roberto Lent, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e filho de Herman Lent, e Rodrigo Murtinho, diretor do Icict e responsável pela reedição do livro.

Acesso aberto

O Massacre de Manguinhos é o primeiro livro a ser lançado pela coleção Memória Viva, que busca tornar acessíveis ao público obras de grande relevância acadêmica, mas que se encontravam esgotadas. Tanto o livro de Lent quanto os próximos lançamentos estarão em acesso aberto, ou seja, disponíveis em versão digital. “A ideia de criar a coleção surgiu durante minha pesquisa de doutorado, quando eu próprio encontrei dificuldades para ter acesso a algumas obras. Há vários livros importantes para a memória e o debate de temas caros ao país que estão se perdendo em fundos de catálogo”, narra Murtinho, idealizador da Memória Viva. Nos próximos meses, serão recuperadas obras como Sob a verdade oficial: Ideologia, propaganda e censura no Estado Novo, de Silvana Goulart, Saúde: promessas e limites da Constituição, de Eleutério Rodriguez Neto, e A medicina e a realidade brasileira, de Carlos Gentile de Mello. 


Ilustração de Oscar Niemeyer para a edição original (Reprodução)

O relato de Lent foi escolhido para abrir a coleção porque é um testemunho muito representativo sobre um período ainda repleto de lacunas na História nacional. “Lançar luz a esse episódio é importante porque, infelizmente, o Brasil não é um país que tem como prioridade rever a sua história e lamber as feridas de um período tão sombrio, ao contrário do que ocorre em outros países latino-americanos. Resgatar esse tipo de memória abre a possibilidade de não viver, de novo, o horror que representa”, justifica Murtinho, revelando que conheceu o livro de Lent apenas em 2014, quando foi citado na aula inaugural da Fiocruz, cujo tema foi a Comissão da Verdade da Reforma Sanitária.

Como enfatiza Nísia Trindade, no prefácio, o livro incita “a colocar em pauta as ilusões que, com frequência, promovem a separação entre ciência e política”. É, pois, “um convite à preservação da memória dos cientistas vitimados pelo autoritarismo e também à defesa dos valores e da prática democrática para o desenvolvimento pleno da atividade científica e intelectual”.

Vídeo restaurado

Durante o lançamento do livro, na terça, também será exibido o trailer do vídeo O Massacre de Manguinhos, de Lauro Escorel Filho, que acaba de ser restaurado pela VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz, vinculada ao Icict, num trabalho do técnico em audiovisual Leonardo Machado Azevedo. O filme reproduz trechos da cerimônia de reintegração dos cientistas cassados, em agosto de 1986. Nas escadarias do Castelo Mourisco reuniram-se alguns dos mais prestigiados cientistas do Brasil, funcionários da Fiocruz e personalidades como o político Ulysses Guimarães e o ator Grande Otelo, celebrando não apenas o retorno dos pesquisadores, mas também a restauração da democracia. 

O vídeo apresenta na íntegra o discurso do sanitarista Sergio Arouca, então presidente da Fiocruz, e uma das figuras mais importantes da Reforma Sanitária que deu origem ao SUS. “Por que esse ódio do pensamento autoritário ao pensamento livre?”, indaga ele à plateia, numa crítica contundente aos ataques da ditadura militar às universidades e aos pesquisadores do país. Arouca identifica, em meio ao conjunto dessas ações, “um ódio à ciência”. E prossegue: “Mas talvez esse simples ato de criar conhecimento, de pesquisar, se torne, mesmo na sua dimensão mais simples, um pensamento subversivo. A subversão da ordem autoritária começa a se dar no instante em que os 'subversivos' exibem sua competência. No gesto de solidariedade das universidades. No gesto da solidariedade internacional. Na ética e na dignidade mantida por esses pesquisadores. Nos encontros solidários dos perseguidos. E no permanente e contínuo perguntar-se sobre o universo. No ensinar, apesar de tudo. Na manutenção, a qualquer preço, da dignidade. O maior inimigo do pensamento autoritário é o pensamento livre. Porque, ao ser livre, ele se torna libertário. Quis a história que a reintegração se fizesse em agosto, quando comemoramos o Dia Nacional da Saúde, no aniversário de Oswaldo Cruz. Quis também em agosto que fosse decretado o Ato Institucional. E nós queremos que esse dia 15 represente simbolicamente para a ciência brasileira um 'nunca mais'. E um alerta."

119 anos da Fiocruz

O lançamento da nova edição de O Massacre de Manguinhos integra as comemorações pelos 119 anos da Fiocruz, que ocorrem entre os dias 27 e 31/5. Além da recuperação do livro e da versão restaurada do filme, várias outras iniciativas têm como foco a preservação da memória institucional — que é, afinal, parte fundamental da memória científica do Brasil. É o caso, por exemplo, da apresentação do tour virtual ao Castelo Mourisco, que ocorre na sexta-feira (31), às 9h.

A coleção Memória Viva é fruto do projeto “Acesso aberto e uso da literatura científica no ensino”, desenvolvido no Icict, onde as políticas de acesso aberto têm sido encaradas como estratégicas para o fortalecimento da ciência e da saúde pública. Recebeu apoio do Programa de Apoio à Pesquisa Estratégica em Saúde (Papes VII/Jovem Cientista, parceria Fiocruz/CNPq), e do Programa de Indução à Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (PIPDT, do Icict/Fiocruz). Além da versão digital, disponível no Repositório Institucional da Fiocruz, o Arca, terá uma tiragem de exemplares impressos, que será distribuída em instituições públicas. O projeto teve apoio ainda da Editora Fiocruz, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).

Tenha acesso ao livro, no Arca.

Veja a programação completa dos 119 anos da Fiocruz.

Comentários

Muito oportuno no cenário recente.

Bom dia. Quero acompanhar e ser informada dos fatos que estão acontecendo.

Bom dia, gostaria de ter um exemplar físico, impresso, do livro.

Olá, Gabriel, obrigada pelo interesse. Por ora, a tiragem de livros físicos foi feita apenas para a distribuição, de forma gratuita, em instituições públicas. Mas você pode ter acesso à obra em sua versão digital: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/33216.

Parabéns pela iniciativa de relançar a obra do Lente. Precisamos nos manter mobilizados e a memória é arma poderosa. RAYMUNDO de Oliveira

Estou muito feliz com a edição deste livro em um momento tão difícil como ode agora!!!O Arouca foi nosso companheiro aqui em Ribeirão Preto!!Não pensei que viveríamos tudo novamente!!Não podemos permitir! Vamos para rua dia 30!!

Parabéns pelo importante relançamento. Especialmente pela oportunidade de que muitos conheçam melhor este atroz período da história do Brasil, quando o país, atônito, tem escutado posições anti-democráticas de autoridades constituídas.

Bastante interessante esse lançamento do livro. Como faço pra conseguir um exemplar?

Olá, obrigada pelo interesse. Você pode ter acesso ao livro, em versão integral e de forma gratuita, no nosso repositório, o Arca: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/33216. att

Olá! Parabéns pelo trabalho! Onde posso acessar o vídeo do professor Sérgio Arouca que foi restaurado? Obrigado!

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Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
CEP: 21040-900 | Tel.: (+55 21) 3865-3131 | Fax.: (+55 21) 2270-2668

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