Investigando a saúde

por
Keila Maia
,
03/02/2017

Novas metodologias de inquéritos buscam revelar a saúde no país sob o ponto de vista dos usuários


O perfil dos usuários de crack no Brasil, a incidência de HIV no país, o impacto das mudanças climáticas na ocorrência de doenças são alguns exemplos de informações que possibilitam a elaboração de políticas públicas e programas de governo. Mas para obter dados dessa natureza, é preciso realizar pesquisas que permitam uma apuração rigorosa e, de fato, reflitam a realidade vivenciada pela população. No Icict, esses estudos são conhecidos como inquéritos de saúde e vêm sendo desenvolvidos por seus laboratórios, em parceria com outras instituições.

“A maioria dos nossos inquéritos é demandada pelo Ministério da Saúde ou por outros órgãos, mas também temos alguns trabalhos para investigar hipóteses. Em ambos os casos, buscamos uma amostra que seja a mais representativa possível, de forma a traçar um panorama bem próximo da realidade”, destaca a pesquisadora do Laboratório de Informação em Saúde (Lis/Icict), Célia Landmann Szwarcwald.

Um dos principais inquéritos de saúde feito pelo Icict é a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Ministério da Saúde, cujo objetivo é levantar dados sobre a situação da saúde e os estilos de vida da população brasileira. A investigação também possibilita saber como as pessoas cuidam da saúde, verificando como se dá o acesso aos serviços, a continuidade dos tratamentos e o financiamento da assistência.

Para promover um levantamento dessa magnitude, é necessário realizar uma série de atividades, que demandam um esforço conjunto por parte das instituições envolvidas. Até a divulgação dos resultados, são várias etapas, que incluem reuniões preparatórias para definir os objetivos, o processo de amostragem e a metodologia da pesquisa e ainda vários encontros técnicos, onde são elaborados os questionários e estabelecidos outros instrumentos, como coleta de sangue, medição de pressão, entre outros.

“Também fazemos a capacitação dos entrevistadores e, para sensibilizar a população sobre a importância de responder à pesquisa, elaboramos todo o material de divulgação”, explica a gerente da PNS no IBGE, Maria Lúcia Vieira.

Para garantir que o questionário desenvolvido irá de fato atender aos objetivos da pesquisa, antes da ida a campo são feitos pré-testes, verificando a adequação da linguagem, o tempo gasto para cada resposta e outras inconsistências. É nesse momento que alguma questão mal elaborada pode ser reformulada.

“Em um desses testes, havia no questionário uma pergunta para saber se estava faltando atendimento odontológico em alguma cidade e, então, perguntávamos se as pessoas iam ao dentista fora de seu município domiciliar. Percebemos, entretanto, que a resposta afirmativa não significava a ausência do serviço na cidade, mas que, simplesmente, o cidadão estava preferindo buscar esse atendimento perto de seu trabalho”, exemplifica Célia Landmann.

No caso da PNS, há ainda uma fase de estudo piloto de todos os procedimentos, uma vez que o inquérito também inclui a realização de medidas físicas e exames laboratoriais. A ideia é executar todo o processo, visando, assim como no pré-teste, verificar possíveis falhas e corrigi-las antes do início da pesquisa. Após os últimos acertos, parte-se para a coleta dos dados e, posteriormente, para a apuração, tabulação e divulgação dos resultados.

A PNS está em sua quarta edição. O estudo é realizado de forma regular a cada cinco anos desde 1998, quando o Ministério da Saúde assumiu a periodicidade do suplemento de saúde da PNAD- Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, levantamento cujo tema central é o mercado de trabalho. Entretanto, até 2013, a PNS era uma parte da PNAD, mas, agora, é feita separadamente e passará a integrar o Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares (SIPD) do IBGE.

“A saúde vem permeando os estudos do IBGE desde a década de 80, mas a necessidade de investigar o tema com mais profundidade cresceu tanto, que se tornou inviável abarcá-la dentro da PNAD. A PNS 2013 é um estudo muito mais abrangente que coroa todos esses anos de parceria entre IBGE, Fiocruz e Ministério da Saúde”, destaca o coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo Pereira.

Neste novo formato, o inquérito é composto por três questionários: o domiciliar, referente às características do domicílio; o relativo a todos os moradores, que dá continuidade ao Suplemento Saúde da PNAD; e o individual, respondido por um morador de 18 anos ou mais, selecionado entre todos os residentes elegíveis, que dá enfoque às principais doenças crônicas não transmissíveis, aos estilos de vida, e ao acesso ao atendimento médico. No morador adulto selecionado, são feitas aferições de peso, altura, circunferência da cintura e pressão arterial, bem como coleta de sangue para realização de exames laboratoriais.

Para Célia Landmann, um dos aspectos mais significativos da PNS é o fato de ser um estudo cujo público-alvo é a população brasileira. Os resultados dessa investigação permitem saber se os programas de saúde estão chegando aos cidadãos, ou seja, é uma radiografia da saúde sob o ponto de vista do usuário, e não do gestor ou do profissional. Outro ponto positivo é que, embora seja um estudo envolvendo IBGE, Ministério da Saúde e Icict, toda a metodologia foi discutida com vários parceiros, como universidades, Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), ONGs, entre outras organizações, em diversos fóruns.

Há, entretanto, limitações a serem superadas, como os processos amostrais, que ainda não conseguem ter representatividade no nível de município. Foi pensando nessa questão que o Icict lançou, no ano passado, o site PNS (www.pns.icict.fiocruz.br), que oferece ferramentas aos gestores municipais, para que possam realizar seus próprios inquéritos. O site disponibiliza o passo a passo da pesquisa, mostrando todo o processo realizado, e ainda dispõe de um serviço de Fale Conosco para esclarecer dúvidas dos usuários. 

Ainda como desafio, Célia destaca a necessidade de atualização constante do modelo de inquérito aplicado. “O ideal seria que um grupo de pesquisadores tivesse tempo de se concentrar nessa questão, uma vez que as pesquisas são feitas para embasar a criação ou reformulação de políticas públicas. Então, é preciso que a conjuntura esteja em análise permanente”, avalia.

PNS e muito mais

Outros inquéritos fazem parte do escopo do Icict. Em âmbito internacional, por exemplo, o Instituto participou, em 2003, da Pesquisa Mundial de Saúde, financiada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O questionário era padronizado, mas incluiu questões específicas sobre o Brasil e, para isso, contou com a parceria do LIS.

Recentemente, outro importante inquérito desenvolvido pelo Icict foi a Pesquisa Nacional Sobre o Uso de Crack, concluída no ano passado. O estudo, que teve início em 2011, foi realizado nas 26 capitais, DF e nove regiões metropolitanas, constituindo-se na maior pesquisa do mundo voltada para uma população vulnerável que faz uso de substâncias psicoativas, como a dos usuários do crack. O principal diferencial desse estudo é o fato de ter sido desenvolvido não apenas em domicílio, mas também nos cenários de uso.

“Os inquéritos tradicionais são feitos nas residências, mas este foi feito de forma mista, ou seja, nas casas e também nos locais onde a droga é utilizada. Entendíamos que, se usássemos somente uma base domiciliar, deixaríamos de colher dados de uma parcela significativa da população, uma vez que boa parte dos usuários de crack não está em casa nos horários em que as pesquisas podem ser realizadas. Além disso, muitos não têm moradia fixa, podendo estar nas ruas ou em abrigos”, explica Francisco Inácio Bastos, coordenador da pesquisa.

Nas entrevistas domiciliares, como se trata de um tema relacionado à droga ilícita, uma das metodologias adotadas foi a Network Scale-up, que consiste em perguntar quantas pessoas da rede social do entrevistado fazem uso de drogas e do crack especificamente, em vez de perguntar se ele próprio é um usuário, o que poderia intimidá-lo. Com isso, também é possível estimar aqueles que usam drogas, mas que não estejam regularmente domiciliados.

Já nas entrevistas feitas nos cenários de uso, utilizando uma metodologia conhecida como Time Location Sample (TLS), visitam-se locais de consumo da droga em dias e horários alternados, onde também são feitos testes rápidos para HIV e Hepatite C.

No inquérito domiciliar, foram entrevistadas cerca de 25 mil pessoas da população em geral, não necessariamente usuários de drogas, visando possibilitar uma precisão estatística. Nas próprias cenas de uso da droga, foram feitas 7.381 entrevistas com usuários de crack no país.

Segundo Francisco, a diferença básica entre a pesquisa domiciliar e a que foi feita nos locais de consumo é que, nas cenas, não foi possível contar com nenhuma base de cadastro. Dessa forma, foi necessário começar do zero, mapear os lugares, porque, por questões de segurança, o cadastro de cenários de uso de droga não é divulgado.

“Além disso, como estávamos entrando nessas áreas como profissionais de saúde, evitávamos contato com equipes de segurança para não termos nenhum problema para conquistar a confiança dos entrevistados. Entretanto, ao divulgar os resultados da pesquisa para as pessoas da segurança, todos disseram que nossos mapeamentos eram bem similares aos deles”, diz.

De acordo com o coordenador, assim como o inquérito domiciliar, às vezes, passa pela dificuldade do acesso, como nos condomínios cujos síndicos não liberam a entrada do pesquisador, no inquérito em cena, a dificuldade se dá porque os cenários são móveis. Em muitas situações, a equipe de pesquisa se organiza para atuar em uma determinada área e, um dia antes, o espaço é ocupado pela polícia, e o grupo de usuários é dispersado.

“Também não podemos usar uma série de instrumentos que, em outras circunstâncias, poderíamos utilizar, como câmeras e gravadores. Para que as atividades aconteçam, é preciso uma negociação permanente e ainda firmar parcerias com diversos grupos, como por exemplo, os líderes religiosos. Nas cidades onde existem unidades da Fiocruz, o nome da Instituição também é um facilitador, no sentido de abrir portas”, conta Francisco.

A Pesquisa Nacional Sobre o Uso de Crack foi demandada pela Senad- Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas/ Ministério da Justiça. Os resultados vão nortear a reformulação das ações e programas do governo destinadas ao combate ao crack. Nessa pesquisa verificou-se, por exemplo, que quase 80% dos usuários no país têm vontade de receber tratamento, o que torna esvaziada a questão da internação compulsória. Ou seja, é necessário trabalhar essa vontade para que o usuário de fato busque o tratamento.

E é também para subsidiar o realinhamento de políticas públicas que já está em andamento o III Levantamento Nacional Sobre o Uso de Drogas. Este, entretanto, segue os moldes clássicos, ou seja, uma pesquisa domiciliar, com amostragem nacional, em parceria com o IBGE. Para Francisco, será mais um trabalho desafiador, devido aos conflitos que envolvem o tema.

“O edital determina que deve ser dada ênfase na questão das fronteiras. Porque o Brasil não é produtor de cocaína, mas serve como via de trânsito e é também importador. Então, o desafio será grande, porque será preciso chegar a uma zona conflituosa, que são essas áreas de fronteira, e ainda lidar com um público variado. Sem dúvida, temos muito trabalho pela frente”, diz

 

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