Lei de Direito Autoral impacta acesso aberto ao conhecimento

por
Clarisse Castro e Claudio Oliveira
,
29/06/2015

Considerada uma das regulações autorais mais restritivas do mundo, a LDA brasileira não permite digitalização de acervos nem para fins educativos. Seu anteprojeto de reforma segue parado no governo federal


(Arte: Vera Lucia Fernandes de Pinho sobre foto de Raquel Portugal)

Com um acervo composto por mais de um milhão de volumes, a Biblioteca de Manguinhos chega aos seus 115 anos aliando tradição e tecnologias. Sem deixar de lado suas atividades rotineiras, a biblioteca se modernizou e hoje oferece serviços que vão além seu espaço físico. Um deles é a digitalização e disponibilização de obras raras, acervo composto por cerca de 600 títulos de revistas científicas nacionais e internacionais datadas nos séculos XVIII, XIX e XX e que podem ser acessadas no site do Laboratório de Digitalização de Obras Raras. O setor realiza a digitalização de obras raras e especiais da Biblioteca de Manguinhos e possibilita o acesso, em formato digital, a livros e periódicos. A iniciativa contribui não só para a preservação do original, mas também para a universalização do acesso a informação.

De acordo com Maria Claudia Santiago, graduada em história e chefe da Seção de Obras Raras A. Overmeer da Biblioteca de Manguinhos, o livro Historia Brasiliae, publicado em 1648, é o material mais antigo disponível para consulta, mas outros ainda mais raros serão disponibilizados em breve. “Recebemos a doação do livro Rimas Sacras da família de Antônio Fernandes Figueira. É uma publicação de 1616. Além dela, também estamos trabalhando no tratamento técnico de dois mapas do século XVII”.

A iniciativa se soma à Política de Acesso Aberto ao Conhecimento promovido pela Fiocruz que, através do seu Repositório Institucional (Arca), disponibiliza para a sociedade parte significativa da sua produção científica - teses, dissertações e artigos científicos. As restrições ao acesso se limitam àquelas impostas pelos editores das revistas científicas.

Cenário cultural controverso

Maria Cláudia Santiago, da Seção de Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos.(Foto: Cláudio Oliveira)

Em março de 2014, a Fiocruz lançou oficialmente a sua Política de Acesso Aberto ao Conhecimento. Através dessa iniciativa, a instituição se compromete junto à sociedade civil com a defesa e o estímulo ao acesso à informação como elemento inseparável ao exercício da cidadania. Agora, cerca de um ano após o lançamento, a questão central é como fazer o acesso aberto avançar.  A preocupação é legítima porque esbarra em um cenário cultural controverso: ao mesmo tempo em que diversas instituições produtoras de conhecimento no Brasil estão se alinhando ao Movimento Internacional para o Acesso ao Conhecimento, alguns aspectos da legislação brasileira ainda tendem a emperrar a democratização da informação.

A Lei de Direito Autoral - LDA (de número 9.610, de 1998) em vigência no país é um desses fatores. Isso porque nos moldes em que está posta, ela restringe substancialmente o acesso, a conservação e o compartilhamento de obras impressas e audiovisuais. Durante toda a vida do autor e nos próximos 70 anos após a sua morte, se não houver autorização prévia deste ou de seus tutores legais, nenhuma obra pode ser reproduzida total ou parcialmente, nem citada textualmente, sequer declamada, mesmo que seja sem fins lucrativos ou com interesses educativos. Nesse contexto, um dos melhores exemplos encontra-se na disponibilização da Revista Brasil Médico, publicada entre 1887 e 1971, por parte da Seção de Obras Raras da Biblioteca de Manguinhos. “A revista é uma das mais consultadas, mas uma grande parte não pode ser disponibilizada na rede em função da lei. Nos orientamos pela Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional”, diz Maria Claudia Santiago.

Se considerarmos apenas as questões relativas ao acesso aberto, facilmente identificamos os impactos da Lei de Direito Autoral. Pensemos, por exemplo, nas bibliotecas brasileiras, físicas e virtuais. Elas existem justamente para organizar, preservar a memória e disponibilizar o conhecimento existente, mas algumas de suas práticas cotidianas mais corriqueiras são, dentro do que determina a LDA, passíveis de ilegalidade. “O empréstimo entre bibliotecas e a reprodução de exemplar raro e de difícil acesso são questionados, por exemplo. O próprio armazenamento digital do material existente e adquirido pela biblioteca é questionado”, explica o consultor jurídico da Fiocruz e professor do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Allan Rocha. (Foto: Virginia Dama).

 Além do desconforto simbólico que isso gera para as bibliotecas, implica também nos custos de suas atividades centrais, segundo a consultora do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas, Jhessica Reia. “Pedir as autorizações para os autores/herdeiros, encontrar autores de obras órfãs (quando não se sabe se o autor está vivo ou quem seriam seus herdeiros) e obter licenciamentos pode se mostrar uma tarefa não apenas difícil, como muito custosa. A pessoa ou instituição responsável pela digitalização acaba tendo duas opções: assumir os riscos tanto da digitalização quanto da disponibilização desses materiais, ou simplesmente não realizar a digitalização. As duas alternativas são bastante ruins, e poderiam ser evitadas se a lei de fato contemplasse os aspectos de interesse público do sistema de proteção autoral.” (Foto: Acervo pessoal)

Reformar é preciso

Diante deste cenário, especialmente a partir da popularização da internet no país, diversas instituições, organizações e personalidades brasileiras discutem a necessidade de uma reforma na Lei 9.610/98. O que as mobiliza é a constatação de que a legislação atual não responde mais às práticas e necessidades da sociedade contemporânea. É que a LDA se estrutura sobre o argumento de zelar pelos detentores dos direitos autorais, mas não especifica, a partir de exemplos reais, o que pode ou não ser realmente enquadrado como uma prática ilícita.

O resultado é uma espécie de queda de braço: de um lado os autores e as empresas, que lucram com a criação, defendendo a concepção de que todo uso não autorizado é ilegal; do outro lado está a sociedade, que segue multiplicando, compartilhando e fazendo usos diversos dos conteúdos que lhe interessa. Ou seja, deslegitimando a atuação legal.

Em 2007, durante a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, essa discussão ganhou corpo com a criação do Fórum Nacional de Direito Autoral, que até 2009 realizou diversos encontros e debates entre sociedade civil, artistas, pesquisadores e representantes das indústrias criativas do país. Substanciado por este debate público, o Ministério da Justiça criou um anteprojeto de reforma e modernização da lei, que foi submetido a uma consulta pública por quase três meses, recebendo 7.863 contribuições.

Segundo as diretrizes do Fórum, o anteprojeto de reforma precisaria enfrentar três questões centrais impostas pela atual LDA. A primeira delas é a desigualdade na relação entre autores e investidores, marcada pela cessão total de direitos dos primeiros, criadores das obras, para as empresas detentoras, sem possibilidade de revisão contratual. A segunda questão é o desequilíbrio entre os direitos autorais e os direitos da sociedade de ter acesso ao conhecimento e à cultura, resguardados pelos Tratados Internacionais de Direitos Fundamentais. E a terceira questão é que pela lei atual, o Estado não tem qualquer papel na proteção e promoção dos direitos autorais no país, o que desestimula e até impede a criação de políticas públicas específicas para o setor.

Neste sentido, o anteprojeto avança ao propor uma supervisão estatal e a regulamentação da gestão coletiva de direitos autorais. Não é objetivo do anteprojeto desproteger os autores brasileiros. O que se pretende, segundo os especialistas ouvidos nessa reportagem, é criar exceções aos rígidos parâmetros da lei atual, limites à sua atuação, de modo que a sociedade possa usufruir mais plenamente de seus direitos à informação e liberdade de expressão.

“Nem todo uso não autorizado é ilegal, muitos usos são perfeitamente legítimos e legais, e decidir sobre o que pode ser usado sem autorização e pagamento não cabe ao autor ou titular, e muito menos o julgamento sobre se isto pode ou não cabe ao provedor. Se assim o fosse estaríamos criando um tribunal privado de direitos autorais junto com a censura privada. Não tenham dúvidas que deste processo estariam sumariamente alijados os cidadãos e os autores, pois seria um debate entre gigantes corporativas do mundo digital versus as indústrias culturais”, defende Rocha.

O movimento pela reforma na LDA atual aponta que modernizar a lei é urgente diante do atual estágio de comunicação por que passa a sociedade contemporânea, pressionada pelas inovações tecnológicas que permitem conexões cada dia mais velozes, que incitam possibilidades dinâmicas de negócios e de produção de conhecimentos, e que sofrem as regulações do mercado e do sistema econômico atual. Os processos políticos e legislativos vigentes parecem não acompanhar esse ritmo. Por isso já em 2012 o Brasil foi considerado um dos cinco países com as piores legislações sobre direitos autorais dentre trinta países analisados pela Consumers International’s IP Watchlist.

Para especialistas, é difícil pensar numa ciência ativa, que produza inovações e ao mesmo tempo assegure sua disseminação, neste contexto legislativo. “O saber acadêmico é construído a partir do conhecimento já discutido, estabelecido, desconstruído e repensado, sendo essencial nesse processo que se tenha acesso ao que já foi escrito e publicado. A pressão pela internacionalização da produção acadêmica brasileira é cada vez maior, mas para se produzir trabalhos de qualidade é preciso ter acesso ao que foi criado anteriormente sobre o tema. Quando uma lei de direito autoral muito restrita diminui as possibilidades de acesso, a sociedade e a própria construção do conhecimento acabam sendo prejudicadas”, afirma Jhessica Reia.

O que aconteceu com o anteprojeto de reforma da Lei de Direito Autoral

Juca Ferreira, Ministro da Cultura. (Foto: Pedro França)

Apesar dos argumentos favoráveis à reforma da LDA, sua concretização esbarra em pelo menos duas fortes resistências: uma de caráter mercadológico e outra de caráter político. Do ponto de vista do mercado, sobretudo das grandes corporações de direitos autorais, ocorre uma intensa movimentação contra as limitações à lei previstas pelo anteprojeto, objetivando evitar o conhecimento e a prática dos usos livres legítimos sem autorização prévia ou pagamento. Do ponto de vista político, o texto segue parado no Ministério da Cultura. Em 2008, quando Gilberto Gil deixou de ser ministro e foi substituído por Juca Ferreira, o projeto manteve continuidade legal.  

Quando a Presidente Dilma Rousseff assumiu o Governo Federal em 2010, nomeou Ana de Hollanda como ministra da Cultura. Em artigo recentemente publicado na revista Reciis, Jhessica Reia e Pedro Nicoletti Mizukami, também consultor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas, fazem um retrospecto do processo histórico da reforma, no qual apontam que “a proximidade da nova ministra com a indústria fonográfica e com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) foi recebida com apreensão por diversos participantes do processo. [...] Houve, ainda, uma revisão do texto do anteprojeto, vazado pela Revista Fórum, que apesar de tornar o texto mais brando, não era uma revisão substancial. O Ministério, nesse período, não demonstrou sinais de que tinha de fato comprado a ideia de uma reforma da LDA, e tampouco de que estava empenhado em fazer com que ela se tornasse realidade”.

Em 2015, o retorno de Juca Ferreira ao Ministério da Cultura reacendeu as expectativas de continuidade do processo. Procurado pela reportagem para esclarecer em que fase se encontra a proposta de reforma, o MinC respondeu em nota que a Casa Civil lhe devolveu o anteprojeto, e que “a equipe do ministro Juca Ferreira irá avaliar o texto para posterior devolução à Casa Civil, o que deve ocorrer ainda este semestre”. De fato, em sua fala de posse, o ministro colocou a reforma da lei como um dos objetivos centrais de sua gestão. “A modernização da legislação pode beneficiar tanto aos criadores quanto atender às demandas dos cidadãos de acessar e compartilhar cultura e conhecimento”, disse. Resta saber se dessa vez o governo federal realmente enfrentará essa questão 

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