Tese do PPGICS ganha prêmio da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo

por
Graça Portela
,
07/10/2016

A tese de doutorado “Doença, uma noção (também) jornalística: estudo cartográfico do noticiário de capa do semanário de informação Veja (1968-2014)”, do aluno Luiz Marcelo Robalinho Ferraz, recebeu o Prêmio Adelmo Genro Filho - PAGF 2016, concedido pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo – SBPJor.

A tese de Robalinho, orientada pela pesquisadora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS)/Icict, Kátia Lerner, e co-orientada pelo pesquisador Patrick Charaudeau, linguista francês, professor emérito da Université Paris XIII e pesquisador do Laboratoire Communication et Politique (Laboratório Comunicação e Política), vinculado à universidade. 

Em seu estudo, Robalinho enfoca as capas da revista Veja entre os anos de 1968 a 2014, e sua abordagem teve por objetivo investigar a noção de doença construída pelo jornalismo nas últimos 40 anos usando como exemplos câncer, depressão e HIV/Aids.

A tese já mereceu destaque no Boletim Faperj e Robalinho já foi agraciado com outra honraria, este em 2012: o Prêmio Freitas Nobre para o trabalho “Entre remédios e hábitos saudáveis: análise da medicalização nos discursos de Veja e Época”. O prêmio é concedido a estudantes de doutorado que apresentam trabalhos nos GPs Intercom – Encontros de Grupos de Pesquisa em Comunicação –, que integram a programação do Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

A comissão julgadora da categoria doutorado contou com as professoras doutoras Isaltina Gomes (UFPE), Ana Coiro (Cásper Líbero) e Marli Santos (UMESP). A entrega do prêmio PAGF 2016 acontece no dia 9 de novembro, às 18h, em Palhoça, Santa Catarina.

Em entrevista exclusiva ao site do Icict, Robalinho fala sobre a escolha da Revista Veja, os resultados de sua pesquisa e as perspectivas de estudos abertas.

Por que abordar a noção da doença sob o enfoque jornalístico?

Primeiro, porque sou um profissional formado na Comunicação Social, tendo feito a graduação tanto em Jornalismo quanto em Publicidade e Propaganda. Foi na área da Ciência Social Aplicada que iniciei a minha formação acadêmica. Depois, a minha experiência profissional, inicialmente como repórter do Jornal do Commercio (PE) e posteriormente como assessor de imprensa da Secretaria de Saúde do Recife e do Conselho Estadual de Saúde de Pernambuco, fez com que eu despertasse o interesse pela forma como os meios de comunicação tratavam dos assuntos relacionados aos processos de saúde e doença, na qual também estão envolvidos as ideias de vida e morte. A vivência nesses dois lados da produção da notícia creditou o meu desejo e a minha opção em retornar à academia para refletir sobre esse campo interseccional de práticas na qual fui formado entre a comunicação e a saúde.

Muito do que sabemos sobre saúde e doença é decorrente dos meios de comunicação. Mesmo que critiquemos ou não o trabalho dos veículos, o campo jornalístico contribui, de forma importante, para a compreensão de que temos sobre a doença na contemporaneidade, ao lado de outros atores, como as autoridades sanitárias, os médicos, os cientistas, os pacientes, entre outros. Perpassada por discursos de outros domínios do saber, o jornalismo cria seus próprios discursos a partir do entrelaçamento dessas vozes para o estabelecimento da sua própria voz na esfera pública, contribuindo na construção de uma noção particular de doença, ou melhor dizendo, noções particulares de doença. Nesse sentido, considerei o trabalho jornalístico inserido dentro de um campo de práticas, no qual o fazer diário dos veículos de comunicação foi - e vem - instituindo historicamente olhares específicos sobre a doença, através de rotinas e lógicas particulares na produção da notícia.

Por que o veículo escolhido foi a revista Veja?

No mestrado, optei pelo veículo jornal como o meu objeto empírico para estudar os discursos jornalísticos construídos sobre a dengue nos anos 2000, sobretudo durante as epidemias, após o registro da entrada do DEN-3 no Brasil, agravando as formas da doença e aumentando o registro de mortes. No doutorado, foquei na proposta de estudar a noção de doença construída pelo jornalismo de forma mais ampla, dentro de um viés temporal bem maior que no mestrado. Por isso, acabei escolhendo o jornalismo de revista para buscar compreender os possíveis deslocamentos ocorridos com essa noção ao longo das últimas quatro décadas.

Em relação aos semanários de informação existentes no Brasil, a revista Veja é a mais antiga, tendo sido lançada em 1968. O maior apelo dado à saúde e à doença nas suas edições, sobretudo a partir dos anos 90 para cá, quando o assunto começou a ter mais destaque no noticiário de capa, foi outro motivo importante para a minha escolha. A saúde aparece nos assuntos de maior interesse dos leitores há, pelo menos, 20 anos, figurando nas três primeiras colocações desde 2002. Atualmente, a Veja ocupa o primeiro lugar no país entre as revistas de informação e a segunda posição no mundo. 

Que resultados você destacaria em sua tese?

A cartografia do noticiário realizada na minha tese compreendeu uma dimensão quantitativa e outra qualitativa. O intuito disso foi fazer um mapeamento aprofundado do noticiário sobre doença, correlacionando-o à dimensão mais ampla do noticiário sobre saúde e ao noticiário em geral, incluindo os demais temas da revista. Do ponto de vista quantitativo, constatei, após a contagem e classificação de 4.531 manchetes de capa principais e secundárias publicadas entre 1968 e 2014, que a saúde apareceu na quinta colocação no ranking da cobertura, perdendo para assuntos como política, internacional, economia e negócios e cultura. Porém, ganhou destaque entre 1996 e 2014, quando subiu para a terceira posição.

Das 401 reportagens de capa identificadas sobre saúde, verifiquei que 86% delas fizeram referência a doenças, seja como foco principal da reportagem, seja como menção dentro de outro assunto noticiado. Correlacionando esse noticiário com a distribuição de mortalidade por grupos de doenças, algo que geralmente atrai maior atenção da imprensa para divulgação, percebi uma transição epidemiológica na cobertura, só que um tanto diferente daquela observada na população brasileira, como avaliam os estudiosos da Epidemiologia. Embora tenha havido uma redução do noticiário sobre as doenças infecciosas e parasitárias e um aumento de reportagens falando sobre doenças do aparelho circulatório (que reúne problemas como hipertensão e os males do coração) e sobre as neoplasias, assim como ocorreu com as mortes por essas doenças nas capitais brasileiras, constatei um grande destaque no noticiário de capa para os distúrbios endócrinos, metabólicos e nutricionais (que incluem doenças como diabetes e obesidade) e os transtornos mentais e comportamentais, tais como a depressão e a dependência química. São dois grupos que nem aparecem nas estatísticas a respeito das principais causas de morte, mas que interessam ao jornalismo. É uma particularidade do campo por serem doenças intrinsecamente ligadas à lógica do risco, ideia cada vez mais difundida pela mídia, demandando um cuidado permanente com a saúde.

Com a composição desse cenário mais amplo da cobertura, analisei na etapa qualitativa a doença mais noticiada dos três principais grupos: o câncer (crônico-degenerativa), o HIV/aids (infectocontagiosa) e a depressão (mental) a fim de garantir maior representatividade da amostra. Foi nessa fase qualitativa que adentrei mais a fundo no estudo da noção jornalística da doença. Apesar de temporalidades distintas e características específicas de noticiabilidade, em função de um maior controle da doença e dos contextos da saúde e do jornalismo da Veja de cada período, a cronicidade foi o principal aspecto verificado no exame das três doenças, demandando um cuidado permanente com a saúde, inclusive no caso do HIV/aids, cujo advento da terapia antirretroviral permitiu a extensão da condição soropositiva do paciente por toda a vida, ao contrário da primeira década da pandemia, quando as mortes eram uma realidade para a maioria dos pacientes. Esse predomínio do caráter crônico levou as reportagens a enfatizarem, com o passar do tempo, a medicalização e o cuidado permanente como principais aspectos discursivos, incentivando o leitor ao consumo de remédios ou mesmo de tratamentos, terapias e diagnósticos, também numa lógica medicalizante. Assim, a doença estaria se configurando numa intenção normativa do atual projeto de saúde, constitutivamente ligado a essas questões mencionadas, responsabilizando o indivíduo pelos seus atos e tornando a saúde uma obrigação moral. A própria mudança na abordagem jornalística da Veja, passando do aspecto social como determinante para a ocorrência de uma doença no âmbito coletivo, nos anos 1970, a exemplo da falta de recursos e da precariedade do sistema público, para o aspecto individual na definição dos hábitos do sujeito como desencadeadores de uma doença, a partir dos anos 1990, é reveladora do atravessamento da condição crônica e da configuração normativa da saúde sobre esse sujeito.

Você pensa em ampliar a sua pesquisa para a mídia jornal e tv, em um pós-doc?

A minha pesquisa aponta para a necessidade de olharmos mais a fundo para o jornalismo de revista, bem como para o jornalismo e a mídia em geral, na construção dessa ideia de doença. Quero aprofundar ainda algumas questões ligadas às mudanças do contrato instituído pela revista com o seu leitor ao falar de doença, pois vejo que teoricamente há muito o que ser aprofundado nessa relação interdisciplinar entre a comunicação e a saúde. Nesse sentido, o conceito de contrato de comunicação midiático, desenvolvido pelo meu co-orientador francês, o Prof. Dr. Patrick Charaudeau, com quem fiz meu doutorado sanduíche no Laboratoire Communication et Politique (Laboratório de Comunicação e Política), da Université Paris XIII, é importante para pensar no processo de produção e interpretação da notícia. O jornal e, especialmente, a TV e as redes sociais também indicam outras questões narrativas específicas a esses meios importantes para se pensar sobre a noção de doença.

O pós-doutorado está nos meus planos para muito breve possivelmente. Estou me preparando para isso. Ainda há muito trabalho pela frente. A comunicação muito tem a contribuir no debate com a saúde, e já está fazendo através dos trabalhos acadêmicos desenvolvidos pelo PPGICS. A proposta cartográfica construída na minha tese permite analisar objetos empíricos diferentes, além de ser útil para a obtenção de indicadores estatísticos aliada à investigação qualitativa em outras áreas do conhecimento para avaliação de problemas de pesquisas diversos, guardando as devidas adaptações em função do objeto de estudo em questão. 

Você pretende transformar sua tese em livro?

Sim, será meu projeto para 2017. 

Você fez o seu mestrado na UFPE, por que optou em fazer o doutorado no PPGICS e que impacto isto trouxe ao trabalho que você desenvolve?

Olhando para o meu percurso acadêmico hoje, tenho a convicção de que fiz uma opção bastante assertiva e coerente com a minha trajetória, apesar de tudo ter ocorrido ao sabor das circunstâncias e do contexto de cada período da minha vida. Quando fiz o meu mestrado, estava retornando ao ambiente acadêmico, depois um período imerso exclusivamente no mercado de trabalho. Estava num momento em que queria muito refletir sobre as minhas práticas de comunicação na saúde, algo que a experiência do mercado de trabalho me "convocava" a fazer.

O Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE me deu o norte necessário para me situar dentro do campo e pensar nos aspectos discursivos que envolvem o jornalismo na relação com a saúde. A minha orientadora na época, a Profª. Drª. Isaltina Mello Gomes, foi de fundamental importância para ampliar os meus horizontes com o seu jeito sempre aberto e generoso de ser. Só que, no período de interseção que houve entre o mercado de trabalho e a academia, eu já não me via apenas como um profissional de comunicação, mas como um profissional do SUS que trabalha com comunicação. Fui vendo o quanto eu era profissional "híbrido", fruto da minha trajetória cada vez mais sensível às questões do Sistema Único de Saúde e atento à realidade da comunicação. Então, depois do mestrado, quando eu me vi diante de um objeto de pesquisa interdisciplinar por excelência (a relação entre jornalismo e doença), decidi encarar o desafio de me mudar do Recife para o Rio de Janeiro a fim de fazer o doutorado no PPGICS, considerando as especificidades e as complexidades dessa interface entre a comunicação, a informação e a saúde.

Foi um sonho acalentado estudar na Fiocruz, mas que só se tornou possível depois de concluir o meu mestrado, momento também em que o PPGICS estava começando. Fui da terceira turma de doutorado. Foi uma experiência muito importante estar junto de professores e colegas das mais diferentes formações, cada qual com seus olhares específicos. Hoje, eu me sinto muito mais à vontade para poder transitar por diferentes áreas, propondo um diálogo entre a teoria e as práticas, no intuito de buscar promover a interdisciplinaridade de algum modo. 

Como foi a orientação recebida pelos professores do PPGICS e do Laboratoire Communication et Politique (Laboratório de Comunicação e Política), da Université Paris XIII?

Tarefa difícil essa de falar pouco a respeito... Tive a orientação de acadêmicos com formações diferentes e que contribuíram de forma decisiva no meu percurso do doutorado. Como cientista social, com formação em Sociologia, mestrado em Comunicação e doutorado em Sociologia e Antropologia, a Profª. Drª. Kátia Lerner me ajudou bastante compreender melhor as transformações ocorridas com a noção de doença no fio do tempo, ao buscar relativizar os meus achados de pesquisa e tentar relacioná-los mais ao contexto de cada época para empreender uma análise diacrônica dos dados obtidos. Isso me fez sair um pouco de certo "determinismo" que, algumas vezes, os comunicólogos, como eu, costumam se basear na análise dos acontecimentos, fugindo da identificação de causas e consequências hermeticamente fechadas para tudo. Com o seu olhar acurado e sempre acolhedor para todas as minhas discussões e ideias propostas, ela me ajudou a enxergar outras perspectivas relacionadas ao tema e a problematizar o que já parecia estar definido por mim. Isso foi muito importante e acho que se deve à sua formação e experiência profissional e acadêmica. Com isso, consegui entender melhor os sentidos atribuídos à doença pelo jornalismo de revista.

Dentro dessa seara discursiva, no qual a minha tese esteve imersa, o Prof. Dr. Patrick Charaudeau foi um presente que me ocorreu durante o percurso do doutorado. É um linguista francês importante na atualidade e fundador da Teoria da Semiolinguística de Análise do Discurso. Eu já o estudava no mestrado com atenção pelas reflexões que fazia sobre o discurso das mídias. No doutorado, ele surgiu como opção fundamental para realizar o meu estágio doutoral a fim de auxiliar na consolidação da minha metodologia e nas minhas discussões teóricas de determinados pontos de minha tese ligados à midiatização do discurso e ao contrato de comunicação, a partir de intervenções realizadas por ele nas conversas que tivemos e nos eventos em que participou e tive a chance de assisti-lo. O contato pessoal com o Prof. Charaudeau acabou aumentando a minha admiração pelo teórico e pessoa simples, atenciosa, carinhosa e atenta à problemática da minha tese. Ele abriu as minhas portas para eu poder pesquisar no laboratório em que trabalha em Paris e pôr em contato com outros pesquisadores, que também me receberam com muita abertura e curiosidade para o meu trabalho e para um pesquisador como eu, vindo do Brasil. As orientações da Profª Kátia e do Prof. Charaudeau se complementaram, dando-me mais segurança para desenvolver o meu trabalho. Eu só tenho a agradecer aos dois.

 

Crédito foto: Marcelo Robalinho - arquivo pessoal

 

Assuntos relacionados

Boletim Faperj em sua última edição destaca tese de doutorado do PPGICS

Tese de Marcelo Robalinho defendida no PPGICS analisa cobertura de saúde da Revista Veja nos últimos 46 anos

Tese do PPGICS faz estudo cartográfico do noticiário da revista Veja

Luiz Marcelo Robalinho Ferraz analisou quatro décadas de capas do semanário enfocando doenças como HIV/Aids, depressão e câncer

Para saber mais

#Ensino / Pesquisa

Entrevista: Wilson Couto Borges

Chefe do Laces avalia que a comunicação ainda é convocada para melhorar a "entrega" da informação à população

Ampliando o conhecimento interdisciplinar

Cursos stricto e lato sensu, de atualização e qualificação já formaram mais de três mil alunos

Icict de olho no Brasil

Ter informação e saber fazer uso dela faz muita diferença e pode salvar milhões de vidas

Centro de Estudos aposta em novos formatos de eventos científicos

Proposta é possibilitar mais diálogos e interação com o público sem deixar de lado a qualidade da programação


Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
CEP: 21040-900 | Tel.: (+55 21) 3865-3131 | Fax.: (+55 21) 2270-2668

Este site é regido pela Política de Acesso Aberto ao Conhecimento, que busca garantir à sociedade o acesso gratuito, público e aberto ao conteúdo integral de toda obra intelectual produzida pela Fiocruz.

O conteúdo deste portal pode ser utilizado para todos os fins não comerciais, respeitados e reservados os direitos morais dos autores.

logo todo somos SUS