Como a malária é vista pela mídia e pelo poder público é tema de pesquisa

por
Graça Portela
,
14/05/2015

Em pleno século XXI, a malária ainda ocupa as páginas dos jornais na região norte do Brasil. Cruzeiro do Sul (Acre), Porto Velho (Rondônia), Itaiatuba (Pará) e até Manaus (Amazonas) são algumas cidades em que o elevado número de casos assustam. A região, conhecida como Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) concentra – segundo dados do Ministério da Saúde – cerca de 99,5% dos casos.

Na região amazônica, segundo dados do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica – Sivep-Malária – até o final de abril de 2015, já foram notificados 30.721 casos. Em 2012, foram 241.806 casos; em 2013 e 2014, respectivamente, 177.791 e 142.599. Até no estado do Rio de Janeiro, na região sudeste, especificamente na área de Mata Atlântica, ocorreram, entre janeiro e março de 2015, casos autóctones da doença – ao todo, 23, sendo 20 deles oriundos das cidades de Guapimirim, Macaé, Magé, Miguel Pereira, Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis.

Causada por um parasita denominado Plasmodium, que é transmitido por mosquitos do gênero Anopheles, a malária tem um período de incubação de 10 a 15 dias, multiplicando-se no fígado do homem e, após, infectando as hemácias (células vermelhas do sangue). Os sintomas principais são dores de cabeça, fadiga, anemia, febre e náuseas. Para se ter uma ideia do impacto da malária no mundo, em 2013, a malária afetou 198 milhões de pessoas e colocou em risco outros 3,2 bilhões – metade da população mundial. Sua importância é tamanha, que a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2007, decretou 25 de abril, como sendo o Dia Mundial da Malária.

Proveniente de Manaus (Amazonas), a jornalista Andréa Arruda veio para o Rio de Janeiro disposta a pesquisar como o poder público e os jornais amazonenses trataram a questão durante o Ciclo da Borracha (século 19), enfocando os anos 1898-1900, e no período atual (2005-2007). Sua dissertação de mestrado defendida no último dia 30 de abril para o Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde – Icict, da Fiocruz, intitulada “Imprensa, Estado e Malária no Amazonas: vozes e sentidos tecidos no tempo” apontou como resultado a “relação indissociável entre Estado e Imprensa na produção de sentidos sobre a malária; também mostra que a imagem da malária, construída pela mídia e pelo poder público, é a de uma endemia amazônica, de sentidos negativos e socialmente periférica; e que o doente, aquele que materializa a existência da doença, é um sujeito passivo ou ilustrativo nas cenas discursivas, historicamente silenciado e, por isto, enfraquecido no seu poder de fazer ver e fazer crer”. Para realizar o seu trabalho, ela pesquisou em 47 textos de jornais e documentos oficiais produzidos nos períodos estudados.

Em entrevista para o site do Icict, a jornalista manauara explica por que decidiu abordar o assunto, o que descobriu em sua pesquisa e a visão da mídia sobre a doença.

Por que abordar a questão da malária em séculos diferentes (19 e 21)?

A malária é uma doença milenar que teve sua importância destacada no Amazonas do final do século XIX, a partir da fase áurea do ciclo da borracha, e que permanece como um grave problema de saúde pública no estado. Entre 1895 e 1914 estima-se que tenham morrido 12 mil pessoas de malária, correspondendo a mais da metade do total de mortes do período. Atualmente, o Amazonas registra milhares de casos da doença todos os anos, sendo que em 2005 atingiu o patamar de 228 mil adoecimentos, embora esses números sejam pouco conhecidos da população brasileira. A importância epidemiológica da malária está refletida nos discursos e estes ajudaram e continuam a ajudar a construir a realidade simbólica sobre esta doença, sendo a Imprensa e o Estado vozes socialmente legitimadas, com grande poder de produzir sentidos, cuja memória encontra-se na sociedade, na história. Nosso objetivo com o estudo nos dois períodos foi justamente verificar mudanças e permanências em relação aos sentidos produzidos no passado e na contemporaneidade e ao modo de produzi-los.

O que a levou a escolher este viés? A que resultados você chegou?

Procuramos evidenciar tanto nos textos de jornais quanto nos documentos oficiais os sujeitos dos discursos – aqueles que têm direito à voz e aqueles que, citados ou silenciados, permanecem na periferia discursiva. Também priorizamos a busca dos sentidos produzidos sobre a malária e sobre o seu doente. Nossas análises mostraram a presença do Estado em todos os textos (à exceção dos produzidos por agências internacionais) e o seu grande poder nos processos de significação da malária nos dois tempos. No século XXI, verificamos o papel amplo e estratégicos das assessorias de comunicação como instância mediadora, com a produção de discursos absorvidos pela Imprensa, mesmo quando esta se posiciona como oponente do Estado. Verificamos que a Ciência foi uma voz mais forte e presente no século XIX, quando médicos e cientistas, mesmo a serviço do Estado, mantinham sua autonomia técnica, falando do lugar de especialistas, e vimos que, hoje, a ciência perdeu parte do seu poder de produzir sentidos sobre a malária na Imprensa, tendo sido este poder deslocado para o campo das políticas públicas. Verificamos também que, nos discursos, a malária foi e continua a ser uma doença geográfica e socialmente periférica, de sentidos negativos e superlativos, e que o doente é apenas eventualmente citado, tendo uma presença meramente ilustrativa nos textos.

Você afirma, em seu trabalho, que “os resultados do estudo apontam a relação indissociável entre Estado e Imprensa na produção de sentidos sobre a malária, com o segundo incorporando predominantemente os discursos do primeiro”. Que discursos foram são esses?

Em relação ao poder público, estudamos especificamente os discursos produzidos e veiculados pelo próprio Estado – mensagens governamentais, textos do Diário Oficial e planos estaduais de controle da malária – que se desdobram não apenas no discurso individual das fontes institucionais, mas também nos textos produzidos para a Imprensa, criando cadeias inter-textuais que carregam ideias e concepções da origem. Estes discursos referem-se a uma variedade de questões relativas à malária, mas podemos destacar os relacionados à Ciência e à gestão do meio ambiente no século XIX e aos fatos e, principalmente, às estatísticas, no século XXI.

Segundo a sua pesquisa, esses discursos “mostram que a imagem da malária, construída pela mídia e pelo poder público é a de uma endemia amazônica, de sentidos negativos e socialmente periférica; e que o doente, aquele que materializa a existência da doença, é um sujeito passivo ou ilustrativo nas cenas discursivas, historicamente silenciado e, por isto, enfraquecido no seu poder de fazer ver e fazer crer”. Você poderia dar exemplos recentes e do século XIX?

 As desigualdades no poder de falar e ser ouvido são enormes nos dois períodos e os doentes foram e continuam a ser o que chamamos sujeitos pressupostos, mantendo-se atrás dos números e outras referências indiretas à sua presença ou de coletividades como “moradores” e “população”. No século XIX, os únicos textos onde o doente cabia com nome e sobrenome eram os obituários. No século XXI, quando aparecem como sujeitos individualizados, normalmente ocupam o lugar de ilustração da matéria, confirmando sentidos predeterminados, como “a malária castiga o bairro tal”.  

Você aponta a similaridade entre a cobertura da mídia e a imagem do poder público sobre a malária em dois momentos históricos distantes dois séculos. Em sua opinião, por que falta um senso mais crítico à imprensa nesses dois períodos?

A presença da voz do Estado na mídia se dá por uma conjunção de fatores, incluindo a necessidade de fazer circular um discurso socialmente legitimado que também legitima o discurso dos jornais, além dos interesses de ordem política e econômica que, desde sempre, estiveram presentes na relação entre poder público e Imprensa. Somam-se a estes, nos dias atuais, por um lado a especialização das assessorias públicas de comunicação e, por outro, a precarização das redações, favorecendo o aproveitamento de material oficial pronto e o uso de fontes oficiais, quase sempre únicas.  

 

O Instituto Oswaldo Cruz (IOC)/Fiocruz disponibiliza o Malária Fone, um serviço para prestar orientação técnica a profissionais de saúde sobre a doença e também informações para a população, pelo e-mail infomalaria@fiocruz.br e pelo telefone (21) 99988-0113, de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h.

Foto: Arquivo Pessoal Andrea Arruda

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Arquivos para download

Malária - Lista de municípios pertencentes às áreas de risco ou endêmicas

Fonte dos dados: Sivep-malária/SVS/MS - Base nacional atualizada em 05/02/2015, Sinan/SVS/MS - Base nacional atualizada em 29/01/2015. Ano de referência: 2013, atualizado em 05/02/2015

Malária - Mapa de Risco de Infecção - Dados 2013

Fonte: Sinan/SVS/MS e Sivep-Malária/SVS/MS

Malária - Monitoramento Estado do Rio de Janeiro 2015

Fonte: Sinan/SVS/MS e Sivep-Malária/SVS/MS

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Para saber mais

Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)
Av. Brasil, 4.365 - Pavilhão Haity Moussatché - Manguinhos, Rio de Janeiro
CEP: 21040-900 | Tel.: (+55 21) 3865-3131 | Fax.: (+55 21) 2270-2668

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