Em setembro, os desafios da produção de dados sobre pessoas com deficiência e suas implicações para as políticas públicas foram assunto de debate de seminário no Icict.
Realizado pelo Núcleo de Informação, Políticas Públicas e Inclusão Social (Nippis – Fiocruz/Unifase) como parte de suas comemorações de 10 anos, em parceria com o Centro de Estudos do Icict, o evento reuniu pesquisadoras, especialistas e representantes institucionais.
Na abertura do seminário - 'Invisibilidade informacional e interseccionalidade: desigualdades sociais e em saúde das pessoas com deficiência no Brasil’, a coordenadora do Nippis, Cristina Rabelais, destacou a importância de adotar uma perspectiva interseccional. Segundo ela, essa abordagem é essencial para compreender as condições de vida e saúde da população com deficiência e enfrentar a invisibilidade estatística que ainda marca esse grupo no país.
Na sua apresentação, a pesquisadora do Icict/Fiocruz e do Nippis, Jéssica Muzy Rodrigues, salientou que ainda é um grande desafio trabalhar com dados sobre deficiência no Brasil. Para Jéssica, a produção existente é insuficiente e bastante dispersa: “Não há um repositório único que concentre essas informações, tampouco bases que dialoguem entre si. Isso dificulta análises mais completas e integradas sobre essa população, restringindo a compreensão de suas condições de vida e saúde".
Outro ponto crítico, de acordo com Jéssica, é o fato de a abordagem sobre deficiência continuar, em grande parte, limitada a uma perspectiva biomédica, com o uso de termos inadequados nos instrumentos de coleta oficiais. “Isso revela uma defasagem entre os avanços da ciência nesse campo e o que efetivamente é incorporado pelos dispositivos institucionais”, ressaltou.
Já Francine Souza Dias, do Nippis/Icict e Cidacs/Fiocruz Bahia, reforçou a relevância da interseccionalidade, como uma ferramenta que busca apoiar a compreensão de experiências simultaneamente atravessadas por diferentes marcadores sociais da diferença, que posicionam os sujeitos em determinadas situações sociais. Segundo ela, não é possível analisar isoladamente cada uma dessas características e seus efeitos, pois elas se articulam nas experiências concretas das pessoas.
Nesse sentido, Francine destacou que tratar a deficiência como uma categoria isolada acaba reforçando o capacitismo, pois, assim, negligenciamos o enfrentamento de outras barreiras que se articulam com a deficiência, relacionadas ao racismo, ao sexismo, à LGBTfobia, ao etarismo, à discriminação religiosa e a tantas outras formas de opressão. “Ser anticapacitista exige de nós o esforço de reconhecer que a deficiência é apenas um dos muitos atributos que compõem as pessoas com deficiência. Esses outros marcadores precisam ser considerados nesse percurso de luta por justiça social para todas as pessoas, em consonância com o lema já consagrado: não deixar ninguém para trás”, finalizou.
Luanda Botelho, analista do IBGE e professora na Uerj/UFRJ, explicou que, no início dos anos 2000, o IBGE começou a aderir à metodologia do Grupo de Washington, que rompe com a ideia de que deficiência é apenas diagnóstico ou defeito do corpo, passando a entendê-la como resultado da interação entre corpo, impedimentos e barreiras sociais. No entanto, segundo ela, persiste um dilema: ainda há forte presença de normas e legislações que definem a deficiência pelo modelo médico, em desacordo com a Lei Brasileira de Inclusão e com a própria Convenção.
“Esse cenário se reflete no próprio trabalho do IBGE. A instituição não atua de forma isolada: sofre pressões sociais, políticas e normativas que, em alguns casos, chegam como imposição. O Censo Demográfico de 2022 ilustra bem essa contradição: ao mesmo tempo em que incorporou quesitos alinhados ao Grupo de Washington, perguntando sobre dificuldades funcionais, também incluiu uma questão direta sobre diagnóstico de autismo, reunindo metodologias muito diferentes em um mesmo instrumento”, completou Luanda.
De acordo com Luanda, o trabalho do IBGE não se limita ao Censo Demográfico e os desafios não dizem respeito apenas à produção, mas também ao uso dos dados. “Por isso, é fundamental incentivar pesquisadores e cientistas a utilizarem as informações disponíveis, incluindo as pessoas com deficiência em estudos que não sejam exclusivamente sobre deficiência. Quando investigamos desigualdades de gênero, raça, renda ou região, precisamos lembrar que a deficiência também atravessa essas dimensões e deve estar presente nessas análises”.
O seminário também abordou a importância de investir em acessibilidade nos instrumentos de coleta, bem como na incorporação de tecnologias digitais e metodologias participativas, essenciais para avançar na coleta de dados interseccionais.
Painel
Durante o evento, foi anunciada a criação de um painel de consulta, um produto desenvolvido pelo Nippis, com apoio do CNPq. O painel permitirá que pesquisadores filtrem variáveis de interesse e identifiquem rapidamente em quais bases os dados sobre deficiência estão disponíveis. Em fase final de elaboração, essa ferramenta de pesquisa será lançada em novembro de 2025, em evento da Abrasco.
Assista à gravação do seminário, disponível no canal da VideoSaúde Distribuidora da Fiocruz no YouTube.